
J o r g e P a p r o c k i - Psiquiatra
MEDICINA
A SAGA DOS MEDICAMENTOS NO BRASIL
FARMÁCIAS DE MANIPULAÇÃO OU MAGISTRAIS NO BRASIL
Postado em 13 de fevereiro de 2015
RESUMO
O papel das farmácias de manipulação nas grandes cinilizações. O papel das farmácias de manipulação após o advento das indústrias farmacêuticas. A ocupação do mercado por medicamentos manipulados. A regulamentação das farmácias magistrais pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Características das farmácias de manipulação em países em desenvolvimento e, em particular, no Brasil: habilitação dos farmacêuticos; matérias primas ou insumos; importadores e distribuidores; controle do produto final manipulado; “marketing”.
O PAPEL DAS FARMÁCIAS DE MANIPULAÇÃO
As farmácias de manipulação ou magistrais desempenharam um papel muito importante em todos os países do mundo, durante muitos milênios. A partir do ano 4000, antes de Cristo, existem registros da existência de estabelecimentos que armazenavam, produziam e vendiam ou distribuíam medicamentos na China, Índia, Egito, Grécia e Roma. Até o final do século XIX a maior parte dos medicamentos existentes no mundo ocidental eram produzidos e vendidos nesses estabelecimentos. Com o advento das indústrias farmacêuticas, a partir do século XIX, na maior parte dos países ocidentais, as farmácias de manipulação diminuíram de importância e passaram a ter, como finalidade principal, a de manufaturar produtos com especificações especiais para suprir as deficiências do processo industrial, massificado e unidormizado de medicamentos. Essa finalidade consistiria na produção de medicamentos com posologia idividualizada destinados, principalmente, para crianças e idosos, também, em apresentações especiais, utilizadas por paciente com necessidades muito particulares, decorrentes de alterações muito específicas. Essa função das farmácias magistrais sempre foi considerada útil e benéfica, em todos os países onde era praticada. Entretanto, em alguns países, as farmácias de manipulação passaram a manufaturar, também, produtos análogos aos industrializados. Esse comportamento passou a ocorrer, principalmente, em países em desenvolvimento e, no Brasil, tomou vulto a partir de 1995. No Brasil, as farmácias de manipulação tentam competir com a indústria farmacêutica ao produzir os mesmos medicamentos, com as mesmas posologias dos fabricados por essas indústrias, com preços muito mais acessíveis. Os preços mais baratos decorrem, principalmente, das condições de produção e de um controle de qualidade precário, próprios de todo processo artesanal e, também, do emprego de insumos de confiabilidade duvidosa, importados de países que nem sempre tem uma tradição de controle de qualidade. Segundo o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INOQS), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no período compreendido entre o ano 2000 e 2003 houve 27 denúncias de consequências graves, sendo 11 em crianças, com um total de 5 óbitos, causadas pelo emprego de medicamentos manipulados.
CARACTERÍSTICAS DO MERCADO
Durante o segundo Congresso Nacional de Farmácias Magistrais, realizado em outubro de 2004, houve a divulgação de que se trata de um setor empresarial bastante importante, com uma oferta de cerca de 60.000 empregos diretos e perto de 235.000 empregos indiretos.
Em 1999 havia perto de 3.200 farmácias de manipulação no Brasil. Em 2004 existiam cerca de 5.356 estabelecimentos, o que representa quase 10% do total das farmácias convencionais existentes no país, que são em torno de 55.000.
No ano de 2000 a produção de medicamentos no país era realizada por perto de 70 indústrias farmacêuticas multinacionais, por cerca de 400 indústrias farmacêuticas nacionais privadas, por 15 indústrias nacionais estatais e por, aproximadamente, 3.200 farmácias de manipulação magistrais.
As 70 multinacionais eram responsáveis por cerca de 75% do faturamento. As 400 indústrias nacionais privadas eram responsáveis por 15%. As 15 indústrias nacionais estatais eram responsáveis por volta de 5% e, as farmácias de manipulação respondiam pelos restantes 5% do faturamento global, anual.
No ano de 2004 houve uma redução substancial no volume total do faturamento e uma mudança bastante significativa na distribuição proporcional desse faturamento: as 70 empresas multinacionais tiveram a sua participação reduzida para 70%; as 400 indústrias nacionais privadas tiveram o seu percentual aumentado para 18%; as 5.356 farmácias de manipulação aumentaram a sua participação para perto de 10% do volume de faturamento total, anual, de medicamentos (tabela 1).
REGULAMENTAÇÃO E ALGUMAS PARTICULARIDADES
As farmácias magistrais obedecem a uma regulamentação promulgada pela Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a RDC 33 do ano de 2000. Essa resolução permite a manipulação de qualquer produto, o que vem sendo contestado e está sendo revisto por uma outra comissão, composta por representantes das farmácias magistrais, por funcionários da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e por representantes de órgãos de defesa do consumidor. Essa revisão torna-se necessária já que existe um consenso universal de que a finalidade principal das farmácias magistrais seria, apenas, a de suprir algumas deficiências do processo industrial de medicamentos.
A manufatura de medicamentos manipulados envolve alguns aspectos que são comuns aos produtos originais, similares e genéricos. Os dois aspectos mais relevantes de todos esses tipos de medicamentos referem-se aos controles de qualidade da matéria-prima e também do produto final, isto é, o medicamento pronto para o consumo. No caso das farmácias magistrais existem, também, algumas particularidades como a habilitação dos importadores, dos farmacêuticos e dos demais funcionários dessas farmácisas. A seguir serão abordados alguns desses aspectos.
a) Matérias-primas ou insumos: perto de 95% dos insumos usados, no Brasil, pelas farmácias magistrais são importados de alguns países desenvolvidos, como Alemanha e Canadá e de muitos outros países, em desenvolvimento, como China, Coréia do Sul, Índia e Indonésia. Os produtores desses últimos países nem sempre adotam critérios de controle de qualidade, análogos aos adotados por indústrias farmacêuticas multinacionais, que investem perto de 20% de seu faturamento com esta finalidade. A farmácia magistral ou de manipulação não tem condições técnicas e econômicas para realizar este controle, da mesma forma como ocorre com a maior parte das pequenas indústrias nacionais, que produzem medicamentos similares. Caso esse controle fosse efetivado, rotineiramente, isto aumentaria o preço desses produtos e reduziria a competividade dos mesmos.
b) Importadores e distribuidores: no Brasil existem perto de 60 importadoras / distribuidoras de insumos. Consta que apenas uma dessas empresas tinha, no ano 2000, o certificado da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) de “Boas práticas de distribuição e funcionamento”. Trata-se da SPFARMA, a qual propaga que envia seus técnicos para a China e para Índia como propósito de inspecionar, "in loco", as condições em que as matérias-primas importadas eram produzidas. Outra empresa, em São Paulo, possuíam um certificado semelhante, fornecido pela Associação Nacional das Farmácias Magistrais (ANFERMAG). Em 2004, apenas 17 das 60 importadoras / distribuidoras existentes estavam cadastrados para receber este certificado de “Boas Práticas de Distribuição e Funcionamento”.
c) Habilitação dos farmacêuticos: consta que, em um universo de 15.000 membros da Associação Nacional de Farmácias Magistrais (ANFERMAG), apenas 800 farmacêuticos possuem o título de Especialista em Farmácia Magistral Alopática. Este é um dado fornecido pela própria associação em 2004.
d) Controle do produto final manipulado: Silas Gouveia, farmacêutico e ex-diretor de medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), afirma que é impossível uma farmácia magistral realizar os testes de qualidade do produto final, como os que são realizados pelas indústrias farmacêuticas idôneas. Trata-se de exames muito caros, que exigem instrumental sofisticado, que a farmácia de manipulação não possui. Assim, os testes de bioequivalência, biodisponibilidade, controle de concentração com micropesagem, pureza do produto e controle de contaminação por agentes patogênicos, passam a ser inviáveis nas farmácias magistrais. Na indústria farmacêutica o alto custo desses exames fica diluído, em função dos lotes muito grandes do produto, o que não ocorre em uma miniempresa que manufatura quantidades muito pequenas.
e) Marketing: as farmácias de manipulação comportam-se, às vezes, como mini-indústrias e adotam técnicas sofisticadas de marketing, com anúncios em jornais, envio de folhetos e, às vezes, contam com representantes/promotores que visitam médicos e oferecem literatura. A Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais (ANFARMAG), com endereço em Vila Buarque – São Paulo (SP) publicou um Manual do Consumidor de Farmácia de Manipulação. O manual continha informações para o usuário acerca dos seguintes tópicos: quais são as vantagens do medicamento manipulado; como agir perante o médico e como deve ser uma receita médica; como escolher a farmácia de manipulação; como deve ser o rótulo do medicamento manipulado e, em particular, dos medicamentos manipulados controlados. As informações são úteis, adequadas e pertinentes, que poderiam ser ainda mais úteis se fossem completadas pelas seguintes informações: se as matérias-primas são adquiridas de indústrias farmacêuticas idôneas; quem são as empresas importadoras/ distribuidoras das matérias primas e se também são idôneas; como é controlada a qualidade dessas matérias primas, isto é, se a biodisponibilidade e bioequivalência são verificadas; como é feito o controle de qualidade do produto final em termos de pureza e dosagem; como é feita a fiscalização das farmácias de manipulação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), e qual a periodicidade dessa fiscalização.
Vamos lembrar, mais uma vez, que os fármacos, no sentido de matérias primas ou insumos de medicamentos ou remédios, muito raramente são produzidos no Brasil. As indústrias farmacêuticas multinacionais importam as matérias primas de suas matrizes, do exterior, e industrializam os medicamentos em suas subsidiárias locais. Essas indústrias não vendem insumos para seus concorrentes. As indústrias farmacêuticas nacionais, grandes, médias e pequenas, bem como as farmácias de manipulação, ficam sujeitas a importar as matérias primas de produtores de outros países. Na maior parte das vezes trata-se de países em desenvolvimento como China, Coréia do Sul e Índia, que nem sempre adotam normas rígidas, de controle de qualidade, dos produtos de exportação. Muito frequentemente tanto as pequenas indústrias nacionais quanto às farmácias de manipulação ficam sujeitas a adquirir fármacos ou matérias primas fundamentados, apenas, em laudos pouco confiáveis dos próprios produtores, exportadores e distribuidores dessas matérias primas. A única garantia de que esses produtos são confiáveis seria uma análise rigorosa da matéria prima, o que é essencial para saber se o produto comprado é, realmente, o fármaco encomendado e não outro. Essa análise exige equipamentos e técnicas sofisticadas e muito caras que são, economicamente, viáveis quando seu custo é distribuído por grandes lotes de medicamentos. Isso inviabiliza o controle da matéria prima por parte das indústrias farmacêuticas pequenas e pelas farmácias de manipulação, que não têm meios para arcar com essas despesas.
O problema de controle de qualidade da matéria prima que é utilizada para a industrialização de genéricos, similares e manipulados é considerado de grande importância, em todo o mundo. Em junho do ano de 2000, o Food and Drug Administration (FDA) foi criticado por não fiscalizar, de maneira adequada, as indústrias estrangeiras que produzem essas matérias primas. Sabe-se que, nos Estados Unidos da América, cerca de 80% das matérias primas que servem para produzir genéricos são adquiridas no exterior e, frequentemente, da China. Sabe-se, também, que cerca de dois terços das 6.030 indústrias chinesas, que fabricam matérias primas e as exportam para os Estados Unidos da América, nunca foram inspecionadas por fiscais do Food and Drug Administration (FDA). A desculpa do órgão é a de número insuficiente de fiscais. No painel em que esse assunto foi discutido, nos Estados Unidos da América, mencionou-se um antibiótico (gentamicina) como possível responsável por 17 óbitos e um sem número de reações tóxicas. Esse antibiótico foi importado de uma empresa chinesa chamada Long March Pharmaceutical (Farmacêutica Grande Marcha). Essa empresa nunca foi inspecionada por fiscais do órgão de fiscalização norte americano. Se lá é assim, tememos pensar o que pode ocorrer entre nós. Não consta que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tenha condições de fiscalizar as empresas estrangeiras chinesas, coreanas e indianas, onde os importadores e distribuidores brasileiros adquirem insumos que são vendidos para as farmácias de manipulação. Em 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária dispunha apenas de 1.800 fiscais para controlar um universo de cerca de 480 indústrias farmacêuticas, 7.000 distribuidores e 55.000 farmácias tradicionais existentes no Brasil, nesta época.
Como foi descrito, existem algumas falhas no processo produtivo e na fiscalização das farmácias de manipulação. Caso essas falhas não sejam sanadas, as farmácias magistrais brasileiras poderão vir a ser consideradas como um anacronismo e um risco e não um benefício. Considerando esse conjunto de dados pode-se julgar, no mínimo, bastante estranho que ainda existam médicos brasileiros que prescrevem produtos manipulados, como afirma o professor Isaias Raw, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Fundação Butantã, de São Paulo.
FONTES CONSULTADAS E LITERATURA RECOMENDADA:
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