
J o r g e P a p r o c k i - Psiquiatra
PROPAGANDA ENGANOSA
Postado em 23 de outubro de 2014
Sir. William Osler (1849-1919), um ilustre médico canadense que lecionou na Escola de Medicina da Universidade John Hopkins (Baltimore-Maryland-EUA) e que desempenhou um papel muito importante na estruturação do ensino médico nos Estados Unidos da América, foi o autor da seguinte afirmação:
“A compulsão para tomar remédios
é uma característica marcante da espécie humana”
Existem evidências do emprego de um grande número de substâncias, com finalidades medicinais, tanto no período pré-histórico entre os povos muito primitivos, quanto no período histórico, nas chamadas grandes civilizações.
Na Índia, um estudioso chamado Characa menciona, perto de 2.000 substâncias naturais, empregadas na medicina da época em escritos datados de 600 anos antes de Cristo. Na China, os escritos mais antigos, relativos ao emprego de cerca de 2.000 medicamentos, datam de 500 anos antes de Cristo. Na Grécia, na época de Hipócrates (460 a 370 aC), eram usados em torno de 200 remédios de origem vegetal, além de medicamentos derivados de 10 espécies de animais e 12 remédios de origem mineral. Em Roma, 150 anos depois de Cristo, Galeno (128 a 201 dC) descreve a existência de 473 medicamentos vegetais, minerais e animais.
No período pré-histórico, nas sociedades chamadas primitivas, a administração e a utilização de medicamentos envolvia, apenas, dois personagens: o curandeiro / feiticeiro e o portador de algum sofrimento ou doença. Nessa época o curandeiro preparava e administrava os medicamentos. Mais tarde, durante a antiguidade do período histórico (700 aC – 600 dC), o feiticeiro / curandeiro foi substituído por um sacerdote e, mais tarde ainda, durante o período medieval (600 – 1450 dC) e durante a Idade Moderna (1450 – 1750 dC), foi substituído por um médico. O número de personagens envolvidos no processo de tratamento foi ampliado, com a figura do boticário, que passou a manufaturar, armazenar e dispensar os medicamentos nas boticas, e mais tarde, nas farmácias de manipulação.
Após a Revolução Industrial (1760 - 1840) e principalmente ao longo do século XX, o elenco de personagens e instituições envolvidas com a produção de medicamentos foi novamente ampliado e tornou-se mais complexo: as farmácias artesanais ou de manipulação foram substituídas por indústrias farmacêuticas; surgiram os distribuidores, que comercializam as drogas por atacado; as grandes cadeias de drogarias e as pequenas farmácias que vendem os medicamentos no varejo; as associações e órgãos de classe, que regulamentam e fiscalizam o exercício dos médicos e dos farmacêuticos; as agências governamentais que passaram a regulamentar e a fiscalizar todas atividades de produção, venda e prescrição dos medicamentos.
No mundo ocidental, na vigência de uma economia capitalista, chama-se de empresa qualquer organização dedicada à produção e venda de mercadorias ou à prestação de serviços e que tem por objetivo principal o lucro. Dentro desse contexto são considerados executivos competentes aqueles que conseguem maximizar o lucro das empresas onde trabalham.
Recebem o nome de empresas multinacionais aquelas que operam em vários países e cujas linhas básicas de atuação são traçadas dentro de um contexto global. De uma maneira geral, as multinacionais são empresas privadas, de capital aberto e, habitualmente, não possuem um acionista controlador. O seu capital está disperso por uma multidão de pequenos, médios e grandes acionistas de vários países. Seus dirigentes e executivos tentam maximizar os lucros da empresa para poder distribuir bons dividendos entre seus acionistas, para se manter em seus cargos e continuar, eles próprios, a ser muito bem remunerados.
As empresas farmacêuticas multinacionais são as responsáveis pelo desenvolvimento e industrialização de medicamentos inovadores, originais ou de marca e são as que mais investem em pesquisa e desenvolvimento (P & D).
Sabe-se que o investimento em pesquisas no desenvolvimento de medicamentos originais atinge cifras muito grandes. Em 1980 o investimento global, anual, em P & D das empresas farmacêuticas multinacionais era de US$ 2 bilhões. Em 1985, era de US$ 4 bilhões. Em 1990, esse investimento era de US$ 8 bilhões. Em 1995, tinha atingido a cifra de US$ 15 bilhões e, no ano de 2000, esse investimento era representado pela monumental quantia de US$ 30 bilhões anuais.
Por outro lado sabe-se que este investimento em pesquisa gera um faturamento muito elevado: em 1990 o faturamento global, anual, das indústrias farmacêuticas multinacionais foi de cerca de US$ 200 bilhões. No ano de 2003 atingiu US$ 300 bilhões e no ano 2004 foi de cerca de US$ 400 bilhões.
Em um mundo capitalista e globalizado esse grande, lucrativo e competitivo mercado somente pode ser mantido as custas de estratégias de promoção muito sofisticadas, agressivas e caras. Ainda que esse investimento em promoção seja pouco divulgado, existem alguns autores que afirmam ser ele idêntico ao investimento em P & D. Por outro lado, pode se afirmar que, muitas vezes, o limite entre promoção agressiva e a propaganda enganosa pode ser muito tênue. Esse último fato costuma vir à tona quando ocorre o enaltecimento das qualidades positivas e a omissão de informações acerca das características negativas de um produto.
O período de duas décadas, compreendidas entre 1950 e 1960, costuma ser considerado como etapa áurea da indústria farmacêutica multinacional. Durante esse período ocorreu a descoberta e o lançamento de um grande número de produtos inovadores como as sulfas, a penicilina e outros antibióticos, hormônios esteróides, beta bloqueadores, antipsicóticos, antidepressivos e benzodiazepínicos. Nessa época a indústria farmacêutica multinacional gozava de grande prestígio, admiração e respeito por parte da comunidade médica e leiga, na grande maioria dos países do mundo ocidental.
Esta situação de confiabilidade foi abalada no período compreendido entre 1960 e 1970 quando o Senado norte americano identificou ligações espúrias entre a indústria farmacêutica dos Estados Unidos da América e a Medicina americana, entre a indústria farmacêutica e as revistas médicas e também, de como as indústrias farmacêuticas norte americanas e européias promoviam seus produtos, nos países em desenvolvimento do terceiro mundo, enaltecendo as suas propriedades terapêuticas e omitindo ou minimizando os efeitos colaterais e tóxicos. Esse foi, também, o período do grande desastre da talidomida, quando em 1959, ocorreram os primeiros relatos de focomelia e, em 1961, antes que o produto fosse retirado do mercado, havia a previsão de cerca de 10.000 crianças deformadas em vinte países.
A partir de 1980 até o ano de 2000 a indústria farmacêutica multinacional atravessou, novamente, um período de grande prosperidade sob o ponto de vista econômico. Essa prosperidade deveu-se, em grande parte, ao lançamento de produtos novos. Nesse período de 20 anos houve o lançamento de perto de 1.200 produtos que é um número equivalente ao que foi lançado nos noventa anos precedentes. Esse grande número de medicamentos ultrapassa de longe as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo os técnicos desse órgão cerca de 500 medicamentos seriam suficientes para dar cobertura a 95% das enfermidades existentes.
A partir do ano 2000, ocorreram alguns fatos que passaram a ameaçar a credibilidade de algumas indústrias farmacêuticas:
No ano 2000 o New England Journal of Medicine publicou um artigo que comentava a existência de acordos financeiros entre algumas indústrias e alguns pesquisadores, o que poderia configurar conflitos de interesse que não eram divulgados. No mesmo ano o British Medical Journal trouxe a tona um problema ligado ao emprego de anticoncepcionais de terceira geração: os autores do artigo mencionavam que os estudos financiados por órgãos estatais revelavam uma grande incidência de acidentes tromboembólicos nas usuárias. Os estudos financiados pelas próprias indústrias costumavam omitir essas complicações.
Em 2002 o The New York Times publicou um editorial acerca de antiinflamatórios não hormonais. Nesse editorial constava a seguinte afirmação: “a saga das drogas caras, que são promovidas para o alivio de artralgia, fica cada vez mais preocupante a cada nova revelação”. Na realidade, existia um consenso entre os especialistas que estudavam o assunto de que alguns aspectos ligados aos produtos celocoxib (Celebra ®) da indústria Pharmacia e do rofecoxib (Vioxx ®) da Merck Sharp Dohme, relacionados com a eficácia e segurança desses produtos, ainda não foram devidamente esclarecidos. O rofecoxib (Vioxx®) foi retirado do mercado em setembro de 2004, por iniciativa da própria indústria produtora, quando ficou constatado que o mesmo, em uso prolongado, poderia dobrar os riscos de infarte e de acidente vascular cerebral.
Em 2004 foi publicado um artigo muito importante na revista Lancet que chamava a atenção para o risco aumentado na incidência de ideação suicida e de tentativas de suicídio, com o emprego de inibidores seletivos de recaptação de serotonina como a paroxetina (Aropax ®) da Smith Kline Beecham, a sertralina (Zoloft ®) da Pfizer e o citalopram (Cipramil ®) da Lundbeck. Os autores do artigo chamavam a atenção para o fato de que alguns dados, relativos à eficácia e a segurança do emprego desses produtos, em crianças e adolescentes, usualmente, não eram mencionados nos artigos publicados em periódicos médicos. Em junho de 2004 o Procurador Geral do Estado de Nova York formalizou uma denuncia perante a Suprema Corte do Estado contra a empresa Glaxo Smith Kline e Smith Kline Beecham Corporation, por prática de atos fraudulentos repetidos, ligados à omissão e malversação de dados, em relação ao emprego de paroxetina (Aropax ®) em crianças e adolescentes deprimidas.
Em 2005 constatou-se que algumas indústrias multinacionais sofreram um novo abalo em sua credibilidade, ao longo dos últimos 5 anos. Esse abalo foi bastante semelhante e por motivos parecidos a aquele que ocorreu há cerca de três décadas. Os motivos prendiam-se a fatos ou incidentes que envolvem uma multiplicidade de instituições e personagens: as indústrias farmacêuticas, os órgãos reguladores e fiscalizadores, os periódicos médicos, os investigadores clínicos e os analistas e autores de revisões sistemáticas (RS) e de meta-análises (MA).
Esses últimos fatos prendiam-se a elaboração de artigos por redatores fantasmas (ghostwriters) profissionais e que eram assinados por professores universitários ou pesquisadores de algum prestígio. Geralmente, esses artigos maximizavam as propriedades positivas dos medicamentos e procedimentos abordados e minimizavam os aspectos negativos dos mesmos. Como foram assinados por autores de certo prestígio, esses artigos eram publicados em revistas médicas de grande impacto e, por isso mesmo, tinham grande repercussão sobre a práxis do médico clínico que adotava os medicamentos e os procedimentos recomendados.
Os fatos e incidentes enumerados referiam-se, apenas, à algumas indústrias. Entretanto, eles repercutiram sobre a indústria farmacêutica como um todo, como já ocorreu em outra época. A empresa de consultoria Harris Interactive realizou um levantamento acerca da credibilidade da indústria farmacêutica junto ao público, nos Estados Unidos da América. A credibilidade era de 80% em 1997. Em 2003 essa credibilidade mal atingia a cifra de 40%.
Recentemente, o The New York Times publicou um artigo com o título de “Medical papers by ghostwriters pushed therapy” (Artigos médicos com terapêuticas impulsionadas por autores fantasmas). Este artigo, assinado por Natasha Singer, aborda o fato de que 26 artigos, redigidos por autores fantasmas e financiados por uma indústria farmacêutica, enalteciam os benefícios da reposição hormonal em mulheres. Esses artigos foram publicados em 18 revistas médicas, incluindo o The American Journal of Obstetrics and Gynecology, bem como o International Journal of Cardiology. O artigo assinado por essa jornalista menciona, ainda, a existência de empresas de comunicação, como a Design Write de Princeton, N. J. que oferecem acessória para redação de artigos acerca de tópicos de interesse de empresas farmacêuticas, os quais poderão ser assinados por autores escolhidos por essas empresas e publicados em revistas importantes. Algumas revistas médicas, como o The Journal of American Medical Association instituíram formulários que exigem dos autores o detalhamento de suas contribuições pessoais na elaboração dos artigos, bem como a declaração de possíveis conflitos de interesse. A comunidade médica e os órgãos de fiscalização esperam que outras revistas médicas adotem as mesmas medidas.
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