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JORGE PAPROCKI

ENTREVISTA COM JORGE PAPROCKI

Postado em 12 de janeiro de 2015

 

Publicada no Jornal Mineiro de Psiquiatria – Ano V – nº 16 – Agosto 2001 – Belo Horizonte. Inserida no www.jmpsiquiatria.com.br. A inserção em nosso site/blog foi autorizada pelo Doutor Humberto Campolina.

 

 

Esta entrevista foi organizada pelo psiquiatra Humberto Campolina que indicou os demais entrevistadores e estruturou a reportagem e propiciou a sua publicação no Jornal Mineiro de Psiquiatria e no site do jornal virtual. Os entrevistadores que realizaram as perguntas são os seguintes psiquiatras, em ordem sequencial: Humberto Campolina, Gustavo Julião, Hélio Lauar, Fábio Lopes Rocha, Luis Carlos Calil, Ronan Rego, Guilherme Lucena e Marco Aurélio Baggio.

 

Humberto Campolina: O sr. naturalmente dispensa apresentações. Porém, em Minas Gerais, há uma geração novíssima à qual foi sonegada, por motivos que todos sabemos, informações em relação ao senhor. Portanto, vamos começar esta entrevista pedindo ao sr. que nos diga algo que possa situá-lo, e a seu trabalho, historicamente.

 

Jorge Paprocki: A sua afirmação inicial é simpática e amistosa mas não concordo com ela. Acredito que todo entrevistado deseja, precisa e gosta de ser apresentado, ainda que não o confesse publicamente. Quanto ao seu pedido para que eu próprio me situe, historicamente, vou tentar ser sucinto e breve. A minha atuação que poderia ser chamada de pública, dentro da psiquiatria mineira, foi muito curta e bastante remota. Ela compreendeu aproximadamente 8 anos e ocorreu no período de 1963 a 1971. Nesse período fui diretor do Hospital Galba Velloso e depois diretor executivo da Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica (FEAP), precursora da atual FHEMIG. No exercício dessas funções tentei transformar o Galba Velloso em um bom hospital. Estimulei a fundação do Centro de Estudos Galba Velloso e a publicação de sua Revista. Inspirei e estimulei a publicação do Manual de Psicofármacos, que foi o primeiro manual de psicofarmacoterapia publicado no Brasil, e que foi dedicado a mim por seus autores. Tentei, e quase consegui, implantar um pólo de pesquisa com psicofármacos no Hospital Galba Velloso. Implantei, organizei e dirigi durante 3 anos a primeira Residência de Psiquiatria de Minas Gerais. Por fim, organizei e fiz acontecer o Primeiro Congresso Mineiro de Psiquiatria, em junho de 1970. A partir de 1971, portanto nos últimos 30 anos, dedico-me à clínica privada e não exerço nenhuma função seja no plano de assistência psiquiátrica pública, seja no plano de ensino graduado ou pós graduado de psiquiatria seja no plano associativo.

 

Gustavo Julião: O sr. teve, e ainda tem, um papel relevante no ensino e formação acadêmica de novos psiquiatras. Como o sr. considera o ensino e a formação proporcionadas pelas atuais residências de psiquiatria em MG?

 

Paprocki: Considero verdadeira a primeira parte de sua afirmação, isto é, que tive um papel relevante, em um passado remoto. Na resposta à pergunta de Humberto Campolina, enumerei algumas de minhas atividades naquele período. Acredito que, na época, a minha maneira de pensar e agir possa ter influenciado alguns psiquiatras, preceptores e estagiários. Existem alguns testemunhos concretos deste fato até hoje. Considero muito gentil a segunda parte da sua afirmação, isto é, que ainda tenho um papel relevante, na formação acadêmica de novos psiquiatras mas não concordo com ela. Não tive nenhuma participação na estruturação das residências do Hospital André Luiz, do Hospital Santa Clara, da residência do Instituto Raul Soares, do Hospital do IPSEMG e do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da UFMG. Tão pouco lecionei em qualquer uma dessas residências. No que se refere a sua pergunta, de como considero o ensino e a formação proporcionados pelas atuais residências de psiquiatria, devo ponderar o que segue: Nós dois sabemos que dirigir uma residência de psiquiatria é atividade muito complexa. Os fatores que podem influir no desempenho dos preceptores e dos residentes, são muito variados. Esses fatores devem ser considerados dentro de um contexto ideológico, político, administrativo e mesmo econômico. Este contexto pode variar de acordo com o local e a época. As metas das lideranças dessas residências também desempenham um papel muito relevante. Como estou afastado das residências há algumas décadas, não conheço mais os contextos onde as mesmas estão inseridas. Conheço as lideranças muito superficialmente e não sei de suas metas. Isto posto, creio que seria deselegante de minha parte avaliar e criticar o que ocorre, ainda que eu confesse não gostar nem um pouco do que está ocorrendo.

 

Hélio Lauar: Esse papel de educador, por que o sr. não o exerceu em ambiente universitário?

 

Paprocki: "Esse papel de educador", como você diz, às vezes é atribuído a mim, por algumas pessoas. Quanto a mim, sempre relutei em assumi-lo seja no sentido formal, seja no sentido informal. A única exceção ocorre quando aceito psiquiatras e psicanalistas jovens para supervisão de casos. Quanto à exercer este papel em "ambiente universitário", confesso que já tentei. Não gostei e não gostaram de mim. Entretanto, sua pergunta suscita uma pequena digressão que será dividida em três partes: a universidade, o papel de professor e o aluno. Quanto à universidade, creio que foi o Ministro da Educação Eduardo Portella que sentenciou acerca da universidade brasileira: "trata-se de uma das universidades mais dispendiosas e menos produtivas do mundo em termos científicos". E ainda completou: "o aluno finge que estuda, o professor finge que ensina, o governo finge que paga". Segundo Roberto Campos, "a gratuidade das universidades públicas é responsável pelo absenteísmo e pelo grevismo, pois essas universidades podem sobreviver sem mostrar serviço". Atualmente o Ministro da Educação Paulo Renato de Souza está tentando avaliar, através do "Provão" a qualidade do ensino no Brasil. No período de quatro anos, compreendido entre 1996 e 2000 foram avaliados 7.927 cursos. Sabe-se que 5.969 obtiveram conceito C, D, E, isto é, regular ou insuficiente. Quanto ao papel de professor universitário ele implica em algumas características e tarefas como: aceitação de uma hierarquia, cumprimento de programas e horários, obediência a legislações esdrúxulas, realização de avaliações e exames, obrigatoriedade de repetir a mesma aula, várias vezes por dia, ou por semana, por meses ou anos a fio. Tudo isso me parece pouco estimulante. Menos estimulante ainda se considerarmos a remuneração. Menos estimulante ainda se considerarmos a obrigatoriedade de conviver com uma fauna chamada alunos. Quanto a estes últimos, considero esta fauna constituída por espécimes frequentemente desinteressados, mas reivindicadores e vorazes, às vezes muito agressivos e habitualmente bastante hostis e pouco civilizados. A minha atitude é semelhante à daquela professora que somente tolerava adolescentes fritos, de preferência bem passados e, se possível, gratinados. Sei que as generalizações de qualquer ordem podem ser errôneas, perigosas e injustas. Todos sabemos que existem, presentemente, muitas ilhas de excelência na universidade brasileira. Sabemos de universidades que remuneram bem seus professores. Sabemos de professores sábios, hígidos, competentes, que não precisam usar a sua função para satisfazer suas necessidades de afirmação, aplauso ou poder e que conseguem conviver com uma estrutura alienada e alienante sem contaminar-se. Sabemos da existência de alunos simpáticos, cultos, inteligentes, civilizados, interessados, produtivos e cooperantes. Tudo isto existe. Principalmente no estado de Minas Gerais. Principalmente, nas residências de psiquiatria.

 

Gustavo Julião: Um determinado periódico, publicação oficial da Associação Mineira de Psiquiatria, é pródigo em críticas permanentes, subliminares ou francamente explícitas, à psiquiatria, aos psiquiatras e aos tratamentos psiquiátricos em geral. Essas críticas constantes associam a prática psiquiátrica à violência, à intimidação e ao desrespeito aos direitos de cidadania do doente mental. Qual é a sua opinião a respeito?

 

Paprocki: Sou um estudioso de antropologia, sociologia e etologia. Por todas essas razões sou muito cauteloso em interpretar comportamentos grupais já que isso é muito mais complexo e difícil que a interpretação de comportamentos individuais. Entretanto, ao aceitar ser entrevistado, assumi comigo mesmo o compromisso de responder a todas as perguntas que fossem feitas. Portanto, aí vai uma tentativa de interpretação psico-sócio-antropo-etológica. a) Entre alguns mamíferos e entre os primatas em particular, todo grupo que está no poder tem características expansionistas e tenta impor-se, de alguma maneira, sobre os grupos que estão fora do poder. b) O grupo, que está no poder, utiliza determinadas estratégias para manter este estado de coisas e conquistar mais seguidores ou adeptos. c) As estratégias que os grupos no poder utilizam, com grande frequência, é a de tentar dominar, desmoralizar ou destruir os grupos fora do poder. Isto ocorre com muitos primatas como alguns símios (babuínos), alguns antropoides (chimpanzés) e também no primata vertebrado, mamífero, bípede, omnívoro, poluidor, territorial e propenso a vida tribal que designa a si mesmo de "Homo Sapiens". d) Nos agrupamentos humanos a história apresenta muitos exemplos desse comportamento, seja no plano filosófico, científico, ideológico, político e religioso. e) Alguns desses exemplos históricos são as cruzadas (cristianismo versus islamismo), o santo ofício e a inquisição (católicos versus hereges), guerra fria (capitalismo versus comunismo), atualmente é o caso da Irlanda (católicos x protestantes), Espanha (separatistas bascos versus espanhóis), Oriente Médio (israelenses versus palestinos). Ao longo do último século, cerca de 70 milhões de pessoas foram mortas em choques desse tipo. f) Felizmente para todos nós, de intensidade menor que as mencionadas, estão as lutas entre psiquiatras e psicanalistas e aquelas internas, nos subgrupos psicanalíticos: é só acompanhar a história da Letra Freudiana, Campo Freudiano, Simpósio, Matema, Círculo Psicanalítico, IEPSI, GREP, Setor Mineiro do Campo Freudiano, Aleph, e assim por diante. Feita essa introdução, vamos aos fatos: 1. Existe em Minas Gerais um grupo psiquiátrico ou psicanalítico que está no poder há muitos anos. Este é um fato! 2. Trata-se de um grupo politizado e muito bem articulado, que tem sido bem sucedido na sua caminhada, em várias áreas de atividade: Este é outro fato. 3. Ao que me consta, esse grupo mantém o controle da Associação Mineira de Psiquiatria, de duas Residências de Psiquiatria e de toda a estrutura da assistência psiquiátrica pública, estadual e municipal e de vários agrupamentos psicanalíticos. Este é um terceiro fato! 4. As estratégias utilizadas pelo grupo que está no poder tem se mostrado eficazes e obedecem a um padrão que ocorre em um grande número de primatas. 5. Acredito que se algum dia houver uma mudança, o grupo que assumir o poder vai adotar estratégias análogas. 6. Para aqueles que desejam aprofundar este enfoque recomendo: Robert Wright - "O Animal Moral"; Carl Sagan - "Os Dragões do Éden"; Konrad Lorenz - "Civilização e Pecado".

 

Gustavo Julião: Qual o futuro que o sr. vislumbra para as neurociências, especialmente a psicofarmacologia? Qual o avanço mais promissor no momento?

 

Paprocki: No que se refere às neurociências todos sabemos que, a partir da década de 80, os métodos de investigação radiológica possibilitaram a visualização de mudanças no fluxo do sangue cerebral, concomitantes à realização de tarefas cognitivas como cálculos matemáticos e testes de memória. Sabe-se, também, que funções como memória e aprendizado motor modificam a arquitetura das sinapses. Parece que, neste início de século, as neurociências estão seguindo o mesmo caminho de todas as áreas de investigação médica da virada do século: a medicina molecular. A maior parte dos grandes centros de pesquisa mundial adota o princípio ou o dogma de que a investigação de qualquer mecanismo vital deve priorizar os aspectos moleculares dos organismos vivos. O perigo deste modelo consiste no fato de que ele tenta reduzir toda a riqueza da produção mental não a um órgão como o cérebro mas a substâncias químicas como os neurotransmissores e os neuropeptideos. O volume 23, Suplemento 1, de Maio de 2001, da Revista Brasileira de Psiquiatria é dedicado na íntegra a procedimentos como Tomografia Computadorizada, Pet, Spect, Ressonância Magnética Estrutural e Funcional e a sua importância. Como afirmam os editores desse suplemento, em psiquiatria, as aplicações de neuroimagem na prática clínica são ainda modestas, mas há perspectivas futuras promissoras. No que se refere à psicofarmacologia creio que ela será, no futuro, aquilo que quiserem as grandes corporações que integram as indústrias farmacêuticas multinacionais ou transnacionais.

 

Hélio Lauar: O sr. acompanhou todo o período de pesquisas clínicas, da clorpromazina à clozapina. Que novas luzes essas pesquisas trouxeram para a etiologia das doenças mentais?

 

Paprocki: A descoberta de novas drogas para o tratamento de transtornos psiquiátricos ocorreu com mais frequência por mero acaso do que devido ao avanço de conhecimentos acerca do funcionamento cerebral. Por isso mesmo, as pesquisas clínicas e com psicofármacos não trouxeram, e nem poderiam trazer, qualquer luz acerca da etiologia de transtornos mentais. Vamos lembrar que, segundo a finalidade com que são ministrados, os medicamentos podem ser classificados nas seguintes categorias: a) Os medicamentos curativos, capazes de curar definitivamente uma pessoa de alguma doença, após o medicamento ser ministrado durante um tempo determinado. Como exemplo cita-se os quimioterápicos, os antibióticos, os antiprotozoários e os antiparasitários. b) Os medicamentos paliativos, que apenas normalizam algumas funções do organismo durante o período em que são ministrados. Como exemplo pode se mencionar os hormônios em geral, os diuréticos, os anti-inflamatórios, os anti-hipertensivos, os imunossupressores e os psicofármacos como antidepressivos e antipsicóticos. c) Os medicamentos sintomáticos, que suprimem ou atenuam um sintoma, que pode ocorrer em diversas enfermidades. São exemplos desses medicamentos os antitérmicos, os antitussígenos, os antidiarréicos, os anti-histamínicos e os psicofármacos como ansiolíticos e euhípnicos. d) Os medicamentos profiláticos, que são sobretudo as vacinas, mas também, em circunstâncias especiais, alguns quimioterápicos e antibióticos. e) Os placebos que são remanescentes de uma época em que se conhecia muito pouco acerca de fisiologia, fisiopatologia e farmacologia e fazem parte dos chamados medicamentos naturais, fitoterápicos ou das chamadas medicinas alternativas. Ainda são muito populares em camadas desinformadas da população. Por outro lado, a descoberta de medicamentos que podem atenuar sintomas de esquizofrenia, depressão, mania e ansiedade acarretou a introdução de estudos controlados em psiquiatria. Esses estudos controlados, que envolvem conceitos de placebo, randomização, grupo controle, teste cego e duplo cego, escalas de avaliação e análise estatística, também são chamados estudos de eficácia. Esses estudos de eficácia, presentemente, são cada vez mais usados, também, na avaliação das psicoterapias. A custa desses estudos e que sabemos, atualmente, que a terapia cognitiva e a interpessoal podem aliviar, moderadamente, sintomas de depressão. Que a terapia comportamental pode influir favoravelmente no transtorno obsessivo-compulsivo. Que a terapia comportamental-cognitiva pode levar a um alívio importante da bulimia nervosa. Este é um dos grandes méritos do advento dos psicofármacos e do emprego de estudos controlados tanto no plano dos tratamentos farmacológicos quanto no plano dos tratamentos psicoterápicos. Além desta contribuição, pode-se afirmar que neste período de aproximadamente 50 anos (1952 a 2001), os psicofármacos, com suas ações neurofisiológicas, bioquímicas e comportamentais cada vez melhor definidas, trouxeram repercussões em diversos planos da atividade psiquiátrica: no plano hospital psiquiátrico, ocasionam modificações profundas em sua fisionomia, possibilitando medidas referentes à contenção e liberdade, ao mesmo tempo que permitem mais ampla aplicação das técnicas socioterápicas e psicoterápicas. No plano da política assistencial, abrem novas perspectivas para o ambulatório psiquiátrico, para o hospital-dia, para a enfermaria psiquiátrica em hospital geral. Em um plano mais geral, contribuem para o aprimoramento da especialidade, ao exigir do psiquiatra melhores conhecimentos de psicopatologia, farmacologia, farmacocinética, neuroanatomia, neuroendocrinologia e propiciam uma reaproximação entre a psiquiatria e a medicina, salutar para ambas.

 

Fábio Lopes Rocha: A atual política do Ministério da Saúde representa algum avanço?

 

Paprocki: Infelizmente o avanço é muito pequeno. A lei 9.787/99 ou Lei dos Genéricos foi promulgada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 10/02/99 e entrou em vigor em 10/08/99. Portanto há 2 anos. Esta lei teria como objetivo principal propiciar a industrialização de medicamentos iguais aos originais, porém mais baratos e, portanto, mais acessíveis à população. A Lei dos Genéricos aprovada no Brasil é bastante semelhante às existentes nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca. Nesses países o medicamento inovador ou de marca tem a exclusividade de comercialização garantida, por períodos variáveis, geralmente de 15 a 20 anos, de acordo com a duração da patente. Durante este período a indústria que lançou o medicamento novo detém o monopólio de sua comercialização. Após expirar o período da patente, outras indústrias podem produzir e vender o mesmo medicamento, com o nome genérico, provocando, assim, considerável redução de seu preço. Esta estratégia mostrou-se eficaz para atenuar o monopólio da indústria farmacêutica, nos países onde foi aplicada. Este esclarecimento torna-se indispensável já que o assunto dos genéricos, frequentemente é apresentado ou discutido entre nós como se a Lei dos Genéricos fosse uma invenção muito original do atual governo ou do atual Ministério da Saúde e não como algo que existe em outros países há algumas décadas. Na época da promulgação da Lei foram omitidos alguns dados muito importantes para a análise dos acontecimentos e dos resultados da medida. Estes dados são os seguintes: a) Que, nos países onde a lei existe, ela foi precedida por alguns anos de negociações entre os governos destes países e a indústria farmacêutica que resultaram em concessões mútuas: de uma maneira geral a indústria farmacêutica recebeu a garantia de patentes mais longas por parte dos governos desses países. b) Que os resultados da lei, no sentido de abaixamento de preços dos medicamentos, somente se fizeram sentir após alguns anos. Nos Estados Unidos da América, após cinco anos, a partir da data de promulgação. c) Que os resultados dependeram de inúmeros fatores como: interesse de indústrias idôneas para produzir os genéricos; interesse das farmácias em comercializá-los com um lucro menor; interesse e confiança dos médicos em prescrevê-los e o mais importante, confiança da comunidade e dos médicos nas agências de fiscalização, ao analisar e avalizar estes medicamentos como confiáveis. d) Mesmo em países muito ricos e industrializados, a simples existência de produtos com um nome genérico e a obrigatoriedade de prescrever pelo nome genérico não se mostraram eficazes para implantar esses produtos. A confiança e o interesse dos médicos sempre foi um elemento primordial, já que eles, os médicos, em última instância, são os formadores de opinião da população nesse setor. e) O não reconhecimento de patentes ou o congelamento de preços também nunca se mostraram eficazes para atenuar o monopólio da indústria farmacêutica, em nenhum país do mundo. No Brasil essas práticas continuam sendo adotadas. Após dois anos e meio de existência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e de cerca de dois anos de vigência da Lei 9.787 ou Lei dos Genéricos o balanço não é muito animador: a) Existem 22  indústrias nacionais envolvidas na produção de medicamentos genéricos e 35 indústrias planejando entrar no mercado. As principais produtoras são a EMS - Sigma Pharma, a Biosintética e o Laboratório Teuto-Brasileiro. b) Em junho de 2001 estavam sendo fabricados no Brasil cerca de 90 produtos genéricos com 237 apresentações o que representa apenas 3% do mercado total de medicamentos. c) Os preços desses medicamentos apresentam-se com uma diferença média de 30% a 50% a menos em relação aos medicamentos originais, de marca. d) A permissão de troca de medicamentos originais por genéricos, nas farmácias, está dando oportunidade para uma troca de originais por medicamentos similares, pelo balconista de farmácia, o que não é permitido por lei. e) A Agência Nacional de Vigilância Sanitária tem se mostrado omissa quanto a informar aos médicos e à comunidade acerca de alguns aspectos fundamentais de seu funcionamento e dos resultados, cujo conhecimento é indispensável para seu sucesso. 1. A Anvisa não sabe qual a quantidade de fármacos e medicamentos registrados e fabricados no Brasil? (15.000, 20.00, 25.000)? Bolívia, Venezuela e Argentina sabem! 2. No momento do registro de um genérico a matéria-prima é submetida sempre a testes de biodisponibilidade e bioequivalência ou é aceita a documentação de seu país de origem (Canadá, China, Índia, Israel, Portugal, Alemanha)? 3. No momento da renovação de registro de medicamentos similares são exigidos testes de bioequivalência e biodisponibilidade como dos genéricos, ou não? 4. Qual é a percentagem de medicamentos vendidos sem prescrição nas farmácias? Era de 70% antes de 1999. 5. Qual é a percentagem atual de medicamentos falsificados. Era de 20% antes de 1999. 6. Qual o número de farmácias no Brasil que não tem farmacêutico responsável? No estado de São Paulo era de 50% antes de 1999. 7. Qual é o ritmo de fiscalização das farmácias: semanal, quinzenal, mensal? 8. Qual o controle sobre os medicamentos B.O . - bonificados, ou bons para otários vendidos nas farmácias em troca dos originais. 9. Existe alguma forma de fiscalização sobre os 7.000 distribuidores de medicamentos? de que tipo e com qual periodicidade? 10. As farmácias de manipulação estão comprovando a origem das matérias-primas e a qualidade do produto final? Como? 11. Qual o ritmo de fiscalização das indústrias farmacêuticas: era uma vez por ano, por sorteio e abarcava 2% dos medicamentos ou das indústrias. 12. Existe alguma forma de fiscalização ou auditagem sobre os fiscais? De que tipo e com qual periodicidade? Ou parte-se do princípio que Anvisa e o Ministério da Saúde são incorruptíveis?

 

Fábio Lopes Rocha: Os medicamentos manipulados hoje em MG são confiáveis?

Paprocki: Therezinha Coelho Barbosa Tomassini, chefe do setor de medicamentos do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fundação Oswaldo Cruz, alerta para o fato de que um dos principais focos do problema dos medicamentos está no próprio momento da manipulação nas farmácias, onde falhas múltiplas podem ser detectadas: leitura equivocada da fórmula, introdução de outras substâncias, erros de dosagem, utilização de matérias-primas impuras de origem desconhecida ou sem efeito terapêutico. O professor Nelson Guimarães Proença publica um artigo no Jornal da Associação Paulista de Medicina, em outubro de 2000 onde aborda o tema "Ervas chinesas, doença renal e câncer de rim". Neste artigo o professor menciona o seguinte: "Para muita gente, remédios industrializados são venenos, enquanto que a medicina alternativa pode não curar tudo, mas pelo menos não mata. Por entender que os recursos desta última são pelo menos inócuos, não foram criados os mecanismos de controle que poderiam proteger melhor a população usuária. E, no entanto, também neste campo podem ocorrer riscos para os pacientes. Um artigo mais recente, de autoria do professor de farmacologia Márcio M. Coelho, da Faculdade de Farmácia da UFMG, publicado no Jornal do Sindicato dos Médicos do Estado de Minas Gerais (SINMED-MG) em agosto/setembro de 2000, trata do mesmo tema, que envolve farmácias de manipulação, medicina alternativa e ação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), bem como alguns aspectos legais e morais do emprego de "fórmulas para emagrecimento". Em um ponto de seu artigo o professor Márcio afirma: "a inclusão de outros componentes nas fórmulas de emagrecimento, principalmente plantas como carqueja, alcaçuz, alcachofra, garcinia etc., não é compreendida, pois não há estudos que permitam definir uma possível utilidade destas plantas no tratamento da obesidade. Na verdade, pouco se conhece sobre a atividade farmacológica destas plantas e das reações adversas que seu uso pode causar. Em relação à carqueja, há uma preocupação associada com seu uso, pois há estudos mostrando que esta planta pode induzir tumores em animais experimentais". Existem alguns autores que acreditam que remédios e farmácias de manipulação são um anacronismo que tem sucesso apenas nas camadas menos informadas da população. Talvez por isto o número destas farmácias é tão grande no Nordeste. Como sabemos a taxa de analfabetismo nesta região é de 27,5% enquanto a média no Brasil é de apenas 13,5%. O analfabetismo funcional, que na região sul e sudeste é de 23% no nordeste é de 47,5%. Anacronismo ou não, deve ser lucrativo. A revista Veja, em sua edição 1696, de 18 de abril de 2001, noticia que a empresa de cosméticos Natura acaba de adquirir o laboratório carioca Flora Medicinal, que na primeira metade do século passado chegou a ter 300 fórmulas em seu catálogo. Alguns produtos fabricados até hoje pela Flora Medicinal são Alcachofra, Boldo, Camomila, Catuaba, Jurubeba. A Natura pretende entrar no mercado com fórmulas de 50 anos atrás e colocar no mercado cerca de 100 medicamentos naturais até o fim do ano. Vamos lembrar que em setembro de 1998 foram interditados pela Vigilância Sanitária de São Paulo, o laboratório Veafarma e a farmácia de manipulação Botica Veado d'Ouro. Os donos de ambas empresas foram indiciados e presos por fabricarem e venderem o remédio Androcur, usado para tratamento de câncer de próstata. Isto ocorreu na maior cidade da América do Sul, onde supõe-se a existência de uma estrutura organizada de fiscalização eficiente, com razoável número de fiscais competentes. Temos medo de imaginar o que pode ocorrer em pequenas cidades do interior, onde existem muitas as farmácias de manipulação e onde a fiscalização é precária ou inexistente. Este é apenas um exemplo da possível situação nessa área. Inseridas em um mercado competitivo e nem sempre submetidas a uma fiscalização rigorosa, essas farmácias de manipulação tendem a produzir as mesmas mazelas encontradas em outras atividades. Ao lado de profissionais sérios, multiplicam-se os aproveitadores incompetentes e ou desonestos, com risco de saúde e às vezes de vida para o usuário. A rigor não sabemos quantas farmácias de manipulação existem, onde existem, e como são fiscalizadas. Sabemos que além de atender a manipulação de fórmulas magistrais, anunciam e vendem, por preços baratos, produtos muito complexos como antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos. Frequentemente essas farmácias de manipulação comportam-se como mini-indústrias, com envio de folhetos com preços, anúncios em jornais e "representantes" que visitam médicos e oferecem literatura. Não sabemos qual a origem da matéria-prima que essas farmácias utilizam (Índia, Hong-Kong, Taiwan) para manufaturar os medicamentos, e se esta matéria-prima é produzida por indústrias confiáveis. Não sabemos como é realizada a avaliação e o controle de qualidade dessa matéria-prima. Não sabemos também quais são os planos e projetos da atual Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para abordar e abortar esta situação. O fato é que as farmácias de manipulação e os medicamentos manipulados bem como as chamadas medicinas alternativas, não têm sido objeto da mesma vigilância que cerca a terapêutica apoiada em bases científicas. Daí a necessidade de chamarmos a atenção para o fato que a mesma não é tão inócua quanto parece. Como podemos ver, o problema não é apenas de Minas Gerais.

 

Luís Carlos Calil: E os genéricos? São de qualidade aqui no Brasil? Que diferença há entre os genéricos daqui e dos EUA?

 

Paprocki: A estratégia de comercialização de medicamentos pelo nome da marca ou comercial é responsável, em grande parte, pelo sucesso de vendas da indústria farmacêutica, já que assegura a fidelidade a um nome de marca, por parte do médico que prescreve o medicamento. A indústria farmacêutica investe na promoção de seus produtos cerca de 20% de seu faturamento e o alvo principal desta agressiva promoção é o médico. Em 1970 estava claro para a sociedade e para os governos dos países industrializados que o poder de monopólio das indústrias farmacêuticas multinacionais havia adquirido dimensões inusitadas e intoleráveis. A partir desta data alguns países desenvolvidos passaram à legislar e estabelecer políticas que pudessem fazer frente a este monopólio. Todas as medidas tentadas, baseadas no combate ao abuso de poder econômico, congelamento de preços e não reconhecimento de patentes, mostraram-se ineficientes e inoperantes. A idéia de que o mercado poderia ser suprido por medicamentos de nome genérico, sem marca, após o vencimento do período de patente do produto com nome comercial e que isto poderia reduzir o preço dos medicamentos, foi colocada em prática pela primeira vez, em 1984, nos Estados Unidos da América. Neste ano, o Congresso americano promulgou uma lei, conhecida como Waxman Hatch Act, que criou as bases para uma indústria de produtos com nomes genéricos, após o vencimento da patente do produto original, com nome comercial. Como compensação, à lei contemplava a indústria que produzia os medicamentos originais com uma extensão maior do período de vigência das patentes. Dois anos após começaram a aparecer os primeiros resultados na redução de preços de alguns medicamentos. Os genéricos - a sua definição é a seguinte: remédio intercambiável com outro medicamento original ou de referência ou inovador. Para comprovar a sua intercambialidade, o medicamento genérico é submetido a dois testes: o de bioequivalência e o de biodisponibilidade. A bioequivalência informa que, na mesma dosagem, o genérico tem os mesmos efeitos do produto original. A biodisponibilidade informa que o genérico, na mesma concentração do produto de referência, tem a mesma velocidade e extensão de absorção pelo organismo. As normas de bioequivalência permitem assegurar ao medicamento genérico sua intercambialidade com o medicamento inovador. Ou seja, através de estudos "in vitro" (equivalência farmacêutica) e estudos realizados "in vivo" em voluntários sadios (bioequivalência), verifica-se a performance do medicamento genérico em relação à do medicamento inovador. Ao prescrever um fármaco com nome genérico, que passou obrigatoriamente por essa bateria de testes, o médico terá a garantia de que aquele medicamento deverá apresentar o mesmo efeito terapêutico obtido pelo produto inovador. Além disso, o produto deve obter o registro específico, na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), ser apresentado em embalagem padronizada e jamais possuir marca comercial - ele deve ser comercializado pelo nome da sua substância ativa. Em fevereiro de 2000 foram lançados os primeiros seis medicamentos genéricos. Em agosto de 2000 a relação dos genéricos aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) continha 115 produtos, sendo apenas quatro psicofármacos; um hipnótico (Zolpidem), um antiparkinsoniano (Biperideno), um ansiolítico (Diazepam) e um antidepressivo (Fluoxetina). A matéria-prima com que são produzidos os medicamentos genéricos é importada de outros países: A Sigma Pharma está associada à indústria farmacêutica canadense Apotex. A Biosintética irá importar da indústria israelense Theva. A Davidson Química Farmacêutica Ltda., do Rio de Janeiro, importa matéria-prima da indústria indiana Ranbexy. A Hexal do Brasil Ltda., de São Paulo, importa de sua matriz alemã. A revista Época, em seu número 141, de 29 de janeiro de 2001 noticia que existem 172 medicamentos genéricos comercializados nas farmácias e 57 aguardam aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Este número representa 3,5% do mercado nacional de medicamentos. A diferença básica entre os genéricos produzidos nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Alemanha e Dinamarca é que eles são produzidos em sua maioria, pelas próprias indústrias que introduziram os medicamentos originais ou de marca. No Brasil, como foi mencionado acima, eles ainda são produzidos por indústrias nacionais que importam a matéria-prima de outros países, frequentemente sem tradição em química fina.

 

Fábio Lopes Rocha: Qual o papel atual da chamada indústria farmacêutica nacional?

 

Paprocki: O período compreendido entre 1968 e 1974 foi caracterizado por uma grande disponibilidade de capital externo e por taxas relativamente baixas de inflação. Estes dois fatos somados à determinação dos governos militares de tornar o Brasil uma potência emergente, possibilitaram pesados investimentos em infra-estrutura e em indústrias de base e de transformação como papel, alumínio, produtos químicos e fertilizantes. Nesta época, na visão de governos militares, o domínio do mercado de medicamentos e seus insumos por umas poucas indústrias multinacionais, ameaçavam a segurança nacional. Com o intuito de promover e fortalecer a indústria farmacêutica nacional o governo decidiu, em 1971, não reconhecer mais as patentes no setor de medicamentos. O propósito e a esperança é que esta medida propiciaria a pesquisa em geral e na área de química fina e em particular. Como sabemos, isto não ocorreu, da mesma maneira e pelos mesmos motivos, como não ocorreu por ocasião da reserva de mercado em informática. Mais tarde, a proliferação de indústrias farmacêuticas nacionais limitou-se à criação de unidades que permaneceram no terceiro e quarto estágios de industrialização. Lembramos que o terceiro estágio de industrialização limita-se na transformação de matéria-prima, importada, em cápsulas, comprimidos, xaropes, pomadas e ampolas. O quarto estágio compreende a embalagem e a comercialização desses produtos. Não houve investimento em aprimoramento de tecnologia, de mão-de-obra qualificada ou do desenvolvimento de química fina e muito menos de pesquisa. A dependência de produtos manufaturados deu lugar à dependência de matéria-prima. Segundo tudo indica, após a Lei dos Genéricos, estamos correndo o risco de uma dependência de grandes produtores de genéricos, como Canadá, Estados Unidos, Itália, China, Israel e Índia. Acreditamos que está última política não contribuirá em nada para o aprimoramento da indústria farmacêutica nacional, ainda que possa reduzir, a curto prazo, o preço de alguns medicamentos. Atualmente, a indústria farmacêutica nacional ou doméstica é constituída por cerca de 400 pequenas, médias e grandes empresas que são responsáveis por aproximadamente, 15% do mercado brasileiro de medicamentos. As empresas pequenas produzem em sua maioria, apenas produtos populares, que não exigem prescrição médica. As empresas médias e grandes, além dos produtos populares, industrializam os medicamentos chamados éticos, que exigem prescrição médica: isto é, os similares e agora os genéricos. A seguir, alguns exemplos dessas empresas. Indústrias pequenas, às vezes com apenas dois ou três produtos, como o Laboratório Vitex, do Rio de Janeiro que fabrica o Rhum Creosotado, que contém creosoto de faia e o Pó de Matricária com vitamina A e D. O Laboratório Farmahaz Beta Atalaia, também do Rio de Janeiro, que entre outros produtos fabrica o Capivarol, composto de catuaba, guaraná e óleo de capivara. A pequena, mas muito bem sucedida DM Indústria Farmacêutica Ltda, de Barueri, São Paulo, que fabrica o Engov, o Doril, o Gelol e o Vitasay e que se permite ter, como garoto propaganda, nada menos que o Senhor Edson Arantes do Nascimento, Pelé. Algumas indústrias médias como o Laboratório Ducto Indústria Farmacêutica Ltda, de Anápolis, Goiás e o Medley S. A . Indústria Farmacêutica, de Campinas, São Paulo, ambos já com alguns produtos genéricos no mercado. O Davidson Química Farmacêutica Ltda, do Rio de Janeiro, que pretende importar genéricos da indústria indiana Ranbaxy e já tem 13 produtos aguardando liberação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). A Hexal do Brasil Ltda, de São Paulo, que pretende importar genéricos da sua matriz alemã. A Biosintética que vai importar genéricos da indústria israelense Teva. Entre as indústrias grandes vamos mencionar o Laboratório Teuto Brasileiro Ltda, de Anápolis, Goiás, e o Grupo EMS Sigma Pharma, de Hortolândia, São Paulo. O Laboratório Teuto Brasileiro, Anápolis, tem 1.500 funcionários e um faturamento anual de 250. Industrializa 198 produtos em 400 apresentações. Em agosto de 2000, o laboratório industrializava 20 apresentações de medicamentos genéricos. O grupo EMS Sigma Pharma compreende a Sigma Pharma, responsável pela produção de produtos que exigem prescrição, a Novomed que é responsável pela produção de produtos populares, ou não éticos, vendidos sem prescrição, e a Nature's Plus que cuida da linha de produtos de higiene pessoal e beleza. Logo após a sua fundação a Sigma Pharma incorporou a Novaquímica, outra indústria nacional e, em 1999 adquiriu toda a linha cardiológica da indústria Wyeth. A empresa industrializa 50 produtos em 106 apresentações. Dispõe de 700 propagandistas que visitam um universo de 180.000 médicos. Esta empresa é a segunda indústria farmacêutica do país e foi a primeira a receber autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para produzir medicamentos genéricos.

Ronan Rego: O sr. conviveu com laboratórios na década de 70. De lá para cá o marketing tem se tornado cada vez mais agressivo. Gostaria de saber sua opinião sobre a ética na relação psiquiatra-indústria farmacêutica.

 

Paprocki: Uma maneira de classificar as indústrias farmacêuticas seria de acordo com o estágio que elas atuam. Segundo Jacob Frenkel, cada estágio corresponde a um conjunto de atividades e conhecimentos específicos e diferentes entre si: No primeiro estágio a indústria é capaz de pesquisar e de desenvolver novos fármacos. Esse estágio incluí a obtenção do fármaco, a realização de testes pré-clínicos e testes clínicos, com suas diferentes etapas. No segundo estágio realiza-se a industrialização. O fármaco que, na fase anterior, era limitado a pequenas quantidades, para atender apenas a demanda de testes, passa a ser produzido em escala industrial, em grandes quantidades, para ser comercializado. No terceiro estágio que é chamado de formulação, o fármaco adquire a forma final de remédio ou medicamento que chegará ao consumidor. Este pode ter a forma de cápsula, comprimido, ampola, supositório, xarope, pomada ou creme. Segue-se a embalagem. Nesse estágio o fármaco já não sofre nenhuma alteração em suas características químicas. O quarto estágio é o de comercialização e marketing. A propaganda que é dirigida para a classe médica tem características bem diferentes daquela que é dirigida diretamente ao consumidor. Trata-se de uma propaganda muito cara e que frequentemente consome o dobro de recursos que são destinados à pesquisa. No Brasil não existe nenhuma empresa multinacional ou nacional que opere na primeira fase, isto é, de pesquisa e obtenção de fármacos, com exceção das estatais que trabalham com vacinas e soros, como a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e o Instituto Butantan. A grande maioria das indústrias multinacionais opera excepcionalmente no segundo e usualmente no terceiro e quarto estágios. A quase totalidade das indústrias nacionais opera apenas nos dois últimos estágios, isto é, formulação e comercialização. No Brasil todos os remédios e medicamentos são produzidos por 485 indústrias farmacêuticas multinacionais, nacionais e estatais, e por um número desconhecido de farmácias de manipulação. Eles são entregues nas farmácias por 7.000 distribuidores. Sua venda no varejo é feita por 55.000 farmácias. Isto significa que no Brasil existe uma farmácia para cada 3.000 habitantes. A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que basta uma farmácia para cada 10.000 habitantes. Deve ser um bom negócio vender remédios no Brasil! A estratégia de comercialização de medicamentos pelo nome da marca ou comercial é responsável, em grande parte, pelo sucesso de vendas da indústria farmacêutica, já que assegura a fidelidade a um nome de marca, por parte do médico que prescreve o medicamento. A indústria farmacêutica investe na promoção de seus produtos cerca de 20% de seu faturamento e o alvo principal desta agressiva promoção é o médico. Isto posto, vamos lembrar que a Indústria Farmacêutica Multinacional, tem um departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e departamentos de industrialização, formulação, comercialização e de marketing. A indústria nacional somente tem departamentos de formulação, comercialização e marketing. O departamento de pesquisa e desenvolvimento tem um comportamento absolutamente ético junto aos investigadores de dentro e de fora da empresa. Os departamentos de comercialização e de promoção têm como meta principal vender o produto e comportam-se, frequentemente, de maneira agressiva, como ocorre com qualquer empresa que vende automóveis, televisões, geladeiras ou hambúrgueres. Os funcionários envolvidos nessas atividades são remunerados em função da quantidade de vendas que realizam. A realidade é que o nível desses funcionários, bem como seu treinamento, tem piorado muito ao longo da última década. Sucintamente, todos psiquiatras sabem que, em qualquer relação, existem pelo menos dois agentes que participam do jogo e que são igualmente responsáveis: o sedutor e o seduzido, o explorador e o explorado, o subornador e subornado e assim por diante. O ministro Serra, o Dr. Veccina Netto da ANVISA, os senhores deputados da CPI dos Medicamentos declaram publicamente que os médicos são subornados pelas multinacionais com viagens, presentes, brindes. Na minha vida profissional, seja como investigador, seja na atividade didática como expositor ou conferencista, seja na minha atividade clínica, de consultório, nunca recebi uma proposta indecorosa da indústria farmacêutica multinacional ou nacional. Presentemente, recebo representantes no consultório uma vez por mês, em horário marcado. Aqueles que me trazem literatura séria são bem vindos e bem tratados. Aqueles que me trazem folhetos coloridos promocionais ou fazem considerações pouco pertinentes não são bem vindos.

 

Guilherme Lucena: Qual a sua opinião sobre a divulgação intensa de psicofármacos, principalmente os mais modernos, junto aos médicos não-psiquiatras?

 

Paprocki: Sob o ponto de vista legal, qualquer médico pode prescrever qualquer droga ou fármaco. Sob o ponto de vista moral não seria defensável que um psiquiatra prescrevesse hormônios, hipogliciemiantes, diuréticos, quimioterápicos, imunossupressores ou citostáticos. Da mesma forma não é defensável que médicos em geral prescrevam psicofármacos, quando não tem formação adequada para isso. Existem dados de empresas que realizam estudos de mercado e informam o seguinte: psiquiatras são responsáveis apenas por 20% de prescrições de ansiolíticos e euhipínicos; por 60% de antidepressivos, por 80% de antipsicóticos e por 100% de carbonato de lítio. Oitenta por cento (80%) de ansiolíticos e euhipínicos, quarenta por cento (40%) de antidepressivos e vinte por cento (20%) de antipsicóticos são prescritos por médicos de outras especialidades, como cardiologistas, neurologistas, geriatras, ginecologistas e outros. Outro dado relevante é que as prescrições de medicamentos de lançamento mais recente, exatamente aqueles cujas propriedades são menos conhecidas, ocupam 65% das prescrições globais, feitas por médicos que não são psiquiatras. A indústria farmacêutica, que prioriza lucro, e que conhece muito bem esses dados, simplesmente se aproveita deles. A meu ver, o problema não está exclusivamente na indústria. Gosto de sua pergunta porque ela me dá chance de confessar publicamente um dos grandes pecados de minha atividade profissional. A história é a seguinte: em 1975 foi fundado em Roma, o Comitê Internacional para Prevenção e Tratamento de Depressão. A meta desta organização era a de propiciar, para médicos em geral, uma instrução continuada acerca de como diagnosticar e como tratar portadores de transtornos depressivos. O argumento que embasava este propósito era o de que a prevalência de estados depressivos era muito grande e que não havia nem haveria um número suficiente de psiquiatras para atendê-los, em nenhum país do mundo. Assim, foram fundados o Comitê Espanhol em 1979, os Comitês Britânico e Sueco em 1982 e o Comitê Brasileiro em 1987. Além de membro efetivo do Comitê Brasileiro, ocupei o cargo de Editor de seu do Boletim. Esse Boletim era publicado sob a forma de um Suplemento da Revista Arquivos Brasileiro de Medicina e tinha uma tiragem de cerca de 30.000 exemplares distribuídos à médicos cadastrados pelo Laboratório Roche. Em Minas Gerais coordenei 5 simpósios organizados pelo Comitê e patrocinados pelo Laboratório Roche: Depressão em Neurologia, Depressão em Cardiologia, Depressão em Ginecologia e Obstetrícia, Depressão em Geriatria, Genética e Depressão. Enquanto exercíamos esta atividade o Laboratório Roche tentava persuadir que Moclobemida (Aurorix) era um antidepressivo de primeira linha. Esta atividade de 5 anos, dirigida a médicos em geral, produziu em mim a seguinte convicção: SOMENTE E EXCLUSIVAMENTE O PSIQUIATRA É QUE TEM CONDIÇÕES DE TRATAR TRANSTORNOS MENTAIS COM O EMPREGO DE PSICOFÁRMACOS. Atualmente, faria uma pequena concessão a alguns geriatras, com formação adequada.

 

Guilherme Lucena: Qual sua opinião sobre a análise leiga (i.e., feita por não-médicos) e a repercussão sobre a saúde pública.

 

Paprocki: Entendo que, em sua pergunta, você se refere à psicanálise e não a outras formas de psicoterapia. Portanto, vou responder dentro deste contexto: 1. A posição de Freud quanto a este aspecto foi apresentada em dois trabalhos: "Psicanálise e Medicina" e "Continuação da Questão de Análise Leiga". Ele sempre foi um defensor da existência de psicanalistas não médicos e teria reafirmado isto em 1938, um ano antes de morrer. 2. A teoria e a práxis psicanalítica tem recebido colaborações importantes, ao longo do tempo, de psicanalistas não médicos como Melanie Klein, Susan Isaacs, Anna Freud, Erich Fromm, Erik Erickson, Karen Horney. Isto tem justificado o comportamento de algumas sociedades psicanalíticas e a posição de psicanalistas não médicos. 3. A formação de psicanalistas não é realizada em instituições universitárias. Esta formação ainda é feita em sociedades psicanalíticas que estabelecem suas próprias regras quanto a essa formação. 4. O ensino e o exercício da psicanálise no Brasil, ainda não está regulamentado por lei. A rigor, qualquer grupo pode intitular-se de Sociedade Psicanalítica, pode promover formação, pode conceder diplomas e qualquer pessoa pode intitular-se psicanalista sem comprovar nada. 5. Em Belo Horizonte, como qualquer outro lugar, existem dezenas de grupos que se auto-intitulam Sociedades Psicanalíticas e se auto-outorgam o direito de conceder títulos de psicanalistas. Consequentemente, existe um grande contingente de psicanalistas com formação médica ou psicológica ou sociológica ou filosófica ou religiosa ou, ainda, sem formação alguma. 6. Essa situação envolve alguns atores e alguns comportamentos. Os atores são aqueles que ensinam, aqueles que apreendem e aqueles que sofrem as consequências. Os comportamentos envolvidos são uma mistura de desonestidade, má fé, desinformação e ingenuidade. O resultado deve ser bastante rendoso. 7. As repercussões sobre a saúde pública são desastrosas.

 

Marco Aurélio Baggio: Como você vê o atual momento do atendimento psiquiátrico liberal de consultório, principalmente nesta quadra de baixa do poder aquisitivo da classe média?

 

Paprocki: Vou tentar responder à sua pergunta abordando os seguintes aspectos: a baixa renda do brasileiro, o número excessivo de médicos, o atendimento de um número crescente de transtornos psiquiátricos por médicos de outras especialidades e, no plano psiquiátrico propriamente dito, vou abordar a escolaridade baixa, a desinformação e a proliferação das chamadas medicinas alternativas e práticas mágicas e religiosas. Quanto à baixa renda do brasileiro, sabe-se que cerca de 30% da população do Brasil sobrevive com uma renda menor que R$ 60,00 reais por mês. Trata-se dos chamados miseráveis, que somam 46.000.000 e que não têm acesso a médico. A população restante divide-se em um contingente de 85% que ganha menos de 10 salários mínimos e que tem acesso ao Serviço Único de Saúde (SUS) ou a planos de saúde modestos. Este contingente compreende 105.000.000 de pessoas. Um terceiro grupo é constituído por 15% da população, que ganha mais de 10 salários mínimos mensais e que soma apenas 18.600.000 de pessoas. Somente este último grupo é que tem condições de procurar um médico em consultório privado ou recorrer a um plano de saúde mais caro e diferenciado. Trata-se de uma elite econômica muita pequena e muito disputada. Quanto ao número de médicos sabemos que ele é muito grande. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) preconiza 1 médico para 1.250 habitantes. A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza 1 médico para 1.000 habitantes. O Brasil conta com 1 médico para cada 700 habitantes e Belo Horizonte, em particular, conta com um médico para cada 200 habitantes. Segundo a Associação Médica Brasileira (AMB) existem atualmente, em atividade, cerca de 240.000 médicos. Segundo esta entidade, somente 5% deste total consegue sobreviver, exclusivamente, do exercício de medicina liberal, autônoma, em consultório particular. São, apenas 12.000 médicos que pertencem a esta elite. Os restantes 95% trabalham em um, dois ou mesmo três empregos, além da atividade autônoma, ou em vez de uma atividade autônoma. Quanto ao terceiro tópico, sabemos que ao longo das últimas décadas, um grande número de transtornos considerados da alçada exclusiva do psiquiatra, passou ser atendido por outras especialidades: os transtornos sexuais passaram a ser atendidos pelo urologista ou pelo ginecologista, promovidos à condição de sexólogo; os transtornos alimentares como a bulimia, o comer compulsivo e a anorexia nervosa são tratados pelo endocrinologista; as demências e a doença de Alzheimer, são tratados pelo neurologista; esses transtornos e mais os distúrbios psiquiátricos, do idoso, são tratados pelo geriatra; os transtornos de ansiedade como pânico e ansiedade generalizada são tratados pelo cardiologista,. Aos poucos sobra para o psiquiatra apenas o tratamento dos transtornos bipolares, as depressões resistentes e as esquizofrenias. A meu ver esta é uma razão bastante ponderável do esvaziamento do consultório psiquiátrico de clínica privada. Além dos elementos já mencionados, podemos considerar os seguintes fatores: escolaridade baixa e desinformação da população em geral, persistência de crenças mágicas e esotéricas e proliferação de profissionais marginais, de outras áreas, que atendem pessoas com transtornos psiquiátricos. Quanto à escolaridade, vamos lembrar que no Brasil a média de analfabetismo é da ordem de 14% da população. O analfabetismo funcional, que abarca as pessoas que sabem ler e escrever mas não são capazes de entender o significado de um texto, atinge a cifra de 30%  da população. Isto significa cerca de 50.000.000 de pessoas. Este contingente de analfabetos raramente procura um psiquiatra, inclusive porque ele se superpõe ao grupo dos miseráveis que ganham R$ 60,00 por mês. Quanto a desinformação: Stephen Stahl, psiquiatra norte americano, informa que nos Estados Unidos da América o conceito leigo ou popular acerca da doença mental é o seguinte: apenas 10% da população acredita que a doença mental é consequência de uma disfunção biológica cerebral. Uma grande parcela da população acredita que a doença mental é consequência de defeito de caráter; outra parcela acredita que é consequência de influência nociva dos pais; outra, de que consequência de fraqueza de vontade; outra ainda, que é consequência de comportamento pecaminoso ou de forças divinas. Somente a primeira parcela de 10% procura tratamento psiquiátrico. As demais procuram alívio em medidas psicoterápicas, em esquemas de auto-ajuda, em práticas religiosas e mágicas. Acreditamos que no Brasil esse fenômeno é ainda mais frequente e mais intenso. Os pacientes psiquiátricos recorrem cada vez mais a procedimentos impregnados de misticismo, esoterismo, curanderismo, magia, próprios de culturas primitivas. O perigo está no emprego desses procedimentos como táticas terapêuticas, na pretensa cura de enfermidades para as quais a ciência já tem resposta. E isso está ocorrendo de modo crescente. Quanto aos procedimentos próprios das chamadas medicinas alternativas podemos enumerar um grande número de práticas, amplamente divulgadas pela imprensa leiga e pela televisão e por uma literatura muito farta, que entulha muitas estantes, na maior parte das livrarias, constituída de mapas astrais, numerologia, manipulação de energia, abertura de chácras, tarot, pêndulos, pirâmides, cristais, cabalas, curas florais, búzios, kirilan, iridologia, magnetização, parapsicologia, medicina antroposófica, medicina tibetana, controle da mente, meditação transcendental, medicina bioenergética, psicoterapia de regressão a vidas passadas e muitas outras. Algumas dessas práticas frequentemente apresentam um perigo maior porque usam uma roupagem pseudocientífica, que às vezes é suficientemente convincente e atraente para alguns indivíduos, com embasamento cultural e científico pobre. Essas práticas são divulgadas de maneira incessante por livros, revistas, jornais, televisões, rádios, filmes, fomentando de maneira incessante a credulidade ingênua e a superstição de pessoas com pequena capacidade crítica. O problema mais grave é que esses procedimentos costumam ser praticados, apadrinhados ou simplesmente tolerados, por profissionais da área psiquiátrica e psicológica, com formação universitária formal e também por "terapeutas" ou por "psicoterapeutas" marginais, constituídos em nosso meio por profissionais de outras áreas. Frequentemente, alguns desses profissionais recebem pacientes, indicados por médicos e psicólogos, também mal informados acerca dessas práticas, e às vezes incapazes de avaliar até que ponto as mesmas têm ou não validade científica. Uma parcela desses profissionais marginais é constituída por indivíduos desonestos, que se aproveitam da ignorância e credulidade do grupo, com a finalidade de aferir lucro, prestígio ou poder. Essa atitude que é apanágio do charlatão, pode ocorrer em qualquer cultura primitiva ou não. Outra parcela desses profissionais é constituída por indivíduos que realmente acreditam na eficácia dos procedimentos que empregam ou indicam. Esta parcela é a mais significativa e preocupante. A meu ver, o conjunto desses fatores é responsável pela diminuição da procura do psiquiatra, além da diminuição do poder aquisitivo da classe média. Quero destacar que acredito que a responsabilidade é nossa, por não exercermos um papel educativo mais ativo.

 

Ronan Rego: Mesmo com todo avanço da psiquiatria nos últimos anos, observa-se, sobretudo em BH, a existência dentro da nossa especialidade de um grupo com marcada tendência às visões psicogênica e sociogênica dos transtornos psiquiátricos, e outro excessivamente biológico. A que o sr. atribui tais extremos?

 

Paprocki: 1. No transcurso do último milênio a humanidade adotou, frente a doença mental, uma postura animista, depois uma postura religiosa, depois uma postura humanista e por fim, ao longo do último século, uma postura científica. 2. A postura científica traduz a submissão do homem ao princípio da realidade, ou melhor, uma tentativa de estabelecer uma relação de causa e efeito entre os diferentes fenômenos. 3. Em psiquiatria, a postura científica traduziu-se em três correntes ou hipóteses: a) Psiquiatria organicista, a partir de Kraeplin a qual acredita que a doença mental é uma doença do cérebro, independente do meio ambiente; b) Psiquiatria com base psicológica a partir de Freud, seguidores e dissidentes, que postula que a doença mental decorre de conflitos intrapsíquicos; c) Psiquiatria social, com Laing, Szasz, Cooper, a qual acredita que a doença mental decorre de dificuldades de adaptação em um ambiente penoso. 4. Todas essas colocações tem os seus partidários, que interpretam os sintomas de maneira diferente e propõem tratamentos diferentes. No estágio atual de conhecimentos todas elas devem ser consideradas apenas hipóteses. 5. O perfil desejável do psiquiatra moderno deve ser o seguinte: em um plano geral, deve ter boa formação médica, boa saúde mental e interesse genuíno pela sorte do outro. Em um plano mais amplo ainda deve ter um bom aculturamento, com razoáveis noções de epidemiologia, sociologia, metodologia, estatística, etologia, epistemologia e genética. No plano de formação psiquiátrica, deve ter bons conhecimentos de semiologia e psicopatologia, psicofarmacologia e conhecimento de uma técnica psicoterápica. 6. Quando um psiquiatra não tem um aculturamento amplo, como o mencionado acima, costuma ter a tendência de transformar os seus conhecimentos científicos em religião, as hipóteses em certezas e dogmas e adquire um comportamento radical ou fanático que é próprio da maioria dos fanáticos religiosos.

 

Marco Aurélio Baggio: O que você acha do Movimetno Antimanicomial?

 

Paprocki: Acho o que o Valentim Gentil e o Wagner Gattaz acham, isto é: 1. Trata-se de um movimento eminentemente ideológico e político sem embasamento técnico ou econômico. 2. A tentativa feita na Itália de transformar a assistência manicomial em comunitária era uma cópia do que Maxwell Jones fazia na Escócia e Sivadon fazia na França. 3. O embasamento ideológico e político do Basaglia foi derivado de Laing, Cooper, Marcuse e Sartre, todos já bastante ultrapassados. 4. O movimento antimanicomial no Brasil foi inspirado em Basaglia e Rotelli, profissionais de muito pouca expressão científica na Itália. 5. A OMS recomenda um índice mínimo de 1 leito psiquiátrico para cada 1.000 habitantes. A Suíça e a Suécia tem 1,6/1.000. A Holanda e a Alemanha tem 1,7/1.000. No Brasil o índice é de 0,39 por 1.000. Devemos destacar que a Alemanha tem uma das mais completas assistências psiquiátricas existentes; e no Brasil, praticamente, não existem serviços extra-hospitalares. 6. A experiência internacional demonstra que desospitalização psiquiátrica deve ser precedida pela instalação de uma rede alternativa, eficiente e bem dimensionada. Quando isto não é feito não se trata de desospitalização mas sim de despejo. 7. Alguns autores acreditam que aquilo que ocorreu com as tentativas de desospitalização na Itália, Reino Unidos e Estados Unidos, foi a experiência social de maior fracasso do século XX. 8. Parece que os mentores da luta anti-manicomial no Brasil não levaram em conta o que se escreve acerca do assunto na imprensa leiga desses países. Para aqueles que desejam familiarizar-se com o assunto recomendo "Uma leitura anotada do projeto brasileiro de Reforma Psiquiátrica" de Valentim Gentil e "A criminalização do doente mental: Como fazer e como evitar" de Wagner Gattaz, publicados na Revista USP, número 43, set./out./nov. de 1999.

 

Humberto Campolina: O que o Sr. acha da Lei Carlão e do Projeto Delgado, este recém-aprovado no Parlamento?

 

Paprocki: Estou respondendo a sua pergunta após a sanção presidencial da Lei da Reforma Psiquiátrica. Novamente penso como o Valentim Gentil: não é o ideal mas cai a essência do pensamento basagliano. A "Lei Carlão" como outras, propostas por deputados do Partido dos Trabalhadores, em outros estados brasileiros, tem muito conteúdo ideológico e pouco conteúdo técnico. Essas leis frequentemente sugerem a idéia que o ataque é contra a psiquiatria, os psiquiatras, os tratamentos psiquiátricos e não contra o manicômio.

 

Hélio Lauar: O que o sr. acha que unificaria a psiquiatria mineira, fortalecendo sua posição no cenário nacional?

 

Paprocki: A sua pergunta sugere que as duas coisas (unificação e fortalecimento) são interdependentes e, decididamente, não são. Pelo menos não são necessariamente interdependentes. Existem estados onde a psiquiatria é bastante unificada e que têm pouca representatividade no cenário nacional. Por outro lado, existem estados que tem grande representatividade no cenário nacional onde a psiquiatria não é nada unificada. Para uma resposta menos evasiva seria necessário definir melhor a que tipo de fortalecimento você se refere: político, científico ou outros? Eles também não são necessariamente interdependentes. A discussão deste assunto seria muito extensa e não caberia nesta entrevista. De maneira ampla, acredito que o fortalecimento de qualquer psiquiatria regional é consequência da sua produtividade: Melhor ensino, melhor assistência, mais pesquisa, mais e melhores publicações. Luta antimanicomial e movimento lacaniano não são elementos suficientes para fortalecimento no cenário nacional.

 

Hélio Lauar: O sr. poderia nomear as principais lideranças na psiquiatria mineira?

 

Paprocki: O novo dicionário Aurélio define líder como "o indivíduo que chefia, comanda ou orienta em qualquer tipo de ação, empresa ou linha de idéias". De minha parte prefiro um conceito etológico: Em todo grupo organizado de mamíferos, por mais cooperativo que ele seja, há uma luta permanente pelo domínio social. Na medida que participam desta luta, alguns indivíduos sobem na escala social e ocupam papel de líderes. Isto ocorre em todos os grupos de mamíferos, particularmente nos primatas e portanto também no primata acasalador, territorial, de vida grupal que é o homem. Para que um líder se mantenha no poder ele deve observar certas regras. Estas regras são muito semelhantes em todos grupos de primatas. Para aqueles que estão curiosos quanto às dez regras que um líder deve observar para conquistar e conservar a liderança aconselho o livro "Fauna Humana" da autoria de Desmond Morris e o "Animal Moral" de autoria do Rober Wright. Quanto à liderança da psiquiatria mineira, no jornal "O Risco", da Associação Mineira de Psiquiatria, foi publicado um artigo de autoria de Flavio José de Lima Neves, intitulado "Trinta anos esta noite" no qual é abordado o tema de sua pergunta. Neste artigo o Flavio Neves distingue três etapas na evolução da psiquiatria em Minas Gerais e menciona três lideranças responsáveis por essas etapas: Jorge Paprocki, César Rodrigues Campos e Gilda Paoliello. Creio que o Flávio Neves tem o conhecimento, a experiência e, atualmente, o distanciamento para analisar e avaliar com equilíbrio. Para aqueles mais jovens que não sabem, Flavio Neves é psicólogo, psiquiatra, psicanalista e atualmente religioso. Grande figura humana. De minha parte, acrescento o nome de Francisco Paes Barreto. Ele desempenhou um papel muito importante durante a mudança de Residência de Psiquiatria do Hospital Galba Velloso para o Instituto Raul Soares e sua implantação neste hospital. Exerceu o papel de supervisor e de preceptor por mais tempo que qualquer outro psiquiatra, em um período particularmente turbulento. Criou o Curso Básico de Psicoterapia em 1978, o Curso de Formação Psicanalítica em 1979 e o Colégio Mineiro de Psicanálise em 1980, que tiveram repercussões importantes no movimento psicanalítico em Minas Gerais. Engajou-se com muito empenho na luta antimanicomial e na reforma psiquiátrica. Soube conquistar o respeito e a afeição do seu grupo e recebe testemunhos frequentes desse respeito. É chamado para opinar acerca do rumo a ser dado em instituições psiquiátricas importantes e também no movimento associativo. É um estudioso e excelente profissional. Sem dúvida alguma trata-se de um líder que ocupa este papel por um período muito longo o que evidencia qualidades e habilidades que são raras. Que não me entendam mal, não gosto, não aprovo e não concordo com algumas idéias do Barreto, mas isto é inteiramente irrelevante nesta apreciação. No grupo psiquiátrico que está fora do poder destaca-se a liderança de Humberto Campolina.

 

Humberto Campolina: Qual é o papel político da psiquiatria?

 

Paprocki: Segundo Rui Barbosa "a política é arte de gerir o Estado, segundo princípios definidos, regras morais, leis escritas ou tradições respeitáveis". Em seu livro "Teoria Política" este autor trata de tópicos como o caráter impessoal do estado, conceito de constituição, democracia, socialismo, liberdade, direito à revolução, a natureza e a lógica da escravidão e muitos outros, que sabemos que não são ensinados nos cursos de medicina ou nas residências de psiquiatria. Vamos lembrar que os cursos universitários da área técnica são eminentemente profissionalizantes e que, frequentemente os profissionais formados, ainda que tecnicamente habilitados, nem sempre são cultos, em um sentido amplo. As disciplinas que forneceriam um embasamento cultural e habilitariam o profissional médico a ser detentor de uma boa capacidade de análise crítica, são negligenciados e raramente fazem parte do currículo de formação. No caso do profissional de psiquiatria, conhecimentos básicos de antropologia, epistemologia, história, sociologia, biologia, estatística, etologia, epidemiologia, genética e metodologia de pesquisa, são indispensáveis para o bom entendimento dos fenômenos psíquicos e sociais. São esses conhecimentos que realmente diferenciam o profissional culto e maduro do técnico, apto apenas a repetir determinadas rotinas aprendidas na Faculdade. Uma grande parcela de profissionais de medicina e de psiquiatria frequentou universidades, mas recebeu informações insuficientes e uma formação humanística precária. Esta formação deficiente e inadequada, em termos de aculturamento geral, não propicia uma capacitação para análise crítica, da teoria ou doutrina política e não capacita para o exercício da mesma. Por isso tudo creio que podemos afirmar que, enquanto especialidade estritamente médica, o papel político da psiquiatria e o mesmo da proctologia ou da urologia, isto é, absolutamente nenhum.

 

Humberto Campolina: Qual é o futuro da psiquiatria?

 

Paprocki: Nos últimos tempos minha bola de cristal anda meio opaca. Quando mais jovem eu gostava muito de George Orwell com seu "1984"; de Aldous Huxley com seu "Admirável Mundo Novo"; de Kurt Vonnegut com sua "Revolução no Futuro", e mesmo de Isac Asimow com seu "Eu Robô". Foram meus livros de cabeceira durante algum tempo, relidos várias vezes. Mais tarde, já mais velho, andei lendo "O Ano 2000" de Kahn e Wiener, "O Desafio Japonês" de Hedberg, o "Choque no Futuro" de Alvin Toffler, "Um Sentido de Futuro" de Jacob Bronowski e "Megatreds 2000" de Naisbit e Taburdene. Recomendo a leitura desses livros para todos. Quanto a mim, em vez de exercícios de futurologia pretensamente científicos, estou preferindo, de novo, a ficção científica propriamente dita, de minha juventude. Certa vez, Hermann Kahn, declarou pomposamente, a um jornalista que "em função da superpopulação e da poluição crescente, no ano 2000, haveria um habitante em cada quatro metros quadrados e que, esses quatro metros quadrados seriam de lixo puro". É uma boa frase de efeito que, felizmente, ainda não se concretizou. Da mesma forma, quando perguntaram a Einstein, durante a segunda guerra mundial, de como seria a terceira guerra mundial, a resposta foi a seguinte: "a terceira guerra eu não sei, mas a quarta será com paus e pedras". Ao final desta entrevista estou tentado ensaiar, também, uma frase de efeito. Ela seria a seguinte: "não sei o futuro da psiquiatria mas como já disse antes, a psicofarmacologia será aquilo que a indústria farmacêutica transnacional quiser"... Muito obrigado pela oportunidade desta entrevista. Para mim foi um bom exercício. Espero que tenha sido bom para os entrevistadores e, eventualmente, que seja bom para os leitores.  
 

 

 

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