
J o r g e P a p r o c k i - Psiquiatra
MEDICINA
A SAGA DOS MEDICAMENTOS NO BRASIL
A ANTIGA SECRETARIA DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (SVS)
Postado em 28 de abril de 2015
RESUMO
A criação de um sistema de vigilância sanitária, com o nome de Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) a partir de 1976 / 77. Avaliação deste órgão a partir de um capítulo do livro Bad Medicine, de um artigo publicado no Jornal da Associação Médica Brasileira (JAMB) e de um artigo do professor A.C. Zanini, publicado na Revista Médicos. O conjunto de dados enumerados por essas fontes mostra um órgão pouco eficiente com recursos minguados e que não cumpria suas finalidades de registro e de fiscalização na área de industrialização e comercialização de medicamentos no Brasil.
INTRODUÇÃO
Em 1946, no governo do presidente E. Gaspar Dutra, o órgão que se ocupava da regulamentação e fiscalização da industrialização e comercialização de medicamentos era o Serviço Nacional de Saúde, do Departamento Nacional de Saúde, do Ministério da Educação e Saúde.
Aparentemente, um sistema de vigilância sanitária específico foi instituído pelo Presidente Ernesto Geisel, através da lei 6.360, de 1976 e do decreto 79.094, de 1977, que regulamentava a lei precedente. A lei e o decreto submetiam ao Sistema de Vigilância Sanitária (SVS) os medicamentos, os insumos farmacêuticos, as drogas, os correlatos, cosméticos, produtos de higiene, os saneantes e outros. O órgão de vigilância sanitária competente era a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) que pertencia ao Ministério da Saúde. A lei e o decreto revogavam os decretos anteriores e regulamentavam tudo o que concerne à indústria farmacêutica e medicamentos, durante um período compreendido entre 1976 e 1999, portanto, perto de 23 anos.
Neste capítulo tentamos uma avaliação da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), órgão do Ministério da Saúde, responsável pela fiscalização da industrialização, distribuição e venda de medicamentos no Brasil durante esse longo período, que precedeu a existência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), criada com a medida provisória de número 9.782 de 26 de janeiro de 1999, no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Esta avaliação do órgão está baseada, em um capítulo do livro Bad Medicine, da autoria de três autores norte americanos, publicado em 1992; em um artigo publicado no Jornal da Associação Médica Brasileira (JAMB), em abril de 1994; em um editorial da revista Médicos, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; e ainda, em um artigo de autoria do professor Antônio Carlos Zanini, publicado na mesma revista, em 1998, um ano antes da extinção da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS).
ALGUMAS OPINIÕES RELEVANTES
No que se refere a uma fiscalização deficiente, o Brasil já era famoso sob esse aspecto, no plano internacional, a partir de 1992. Três autores americanos, Silverman, Lydecker e Lee, descreviam o que ocorria no país em seu livro, Bad Medicine. Em um capítulo desse livro, intitulado “Drug Fraud Brasileiro Style”, os autores escrevem: “A população do Brasil, talvez mais de que o povo de qualquer outra nação da América Latina, tem sofrido a praga de medicamentos falsos ou fraudulentos. A explicação é uma combinação de ingenuidade, incompetência, corrupção, estupidez e possivelmente o mais ridículo sistema de inspeção de todo o mundo”. É bom frisar que se trata de autores respeitáveis. Milton Silverman foi um estudioso que precipitou grandes mudanças na questão da fiscalização de medicamentos por parte do governo dos Estados Unidos da América.
O artigo acerca da ineficácia da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) publicado no Jornal da Associação Médica Brasileira (JAMB) em abril de 1994, durante o governo Itamar Franco, tratava da venda de medicamentos importados, sem qualquer fiscalização e com a confissão dos responsáveis quanto à impossibilidade de fiscalização. Tratava-se de vitaminas, analgésicos, antibióticos e medicamentos para perder peso que chegavam às mãos do consumidor brasileiro através de contrabando ou de reembolso postal. A denúncia era do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (SINDUSFARM), do estado de São Paulo, que levou o fato ao conhecimento do Ministro da Saúde, Henrique Santillo, em setembro de 1993. “Pedimos ao governo que impedisse essa contravenção, mas o ministério afirma que não tem condições de fiscalizar o que entra no país a todo momento, pelas fronteiras”, dizia Lauro Moretto, vice-presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no estado de São Paulo (SINDUSFARM) e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo, na época.
Os remédios importados estavam subordinados à lei 6.360/76 e, de acordo com ela, deviam ter registro no Ministério da Saúde, com rótulo, bula e data de validade traduzidos para o português e estampar o nome do responsável técnico pelo produto, em território nacional. Só assim a população saberia o que estava tomando e a quem recorrer em caso de necessidade. Essas regras raramente eram cumpridas.
O Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no estado de São Paulo (SINDUSFARM) afirmava que o volume de medicamentos ilegais que entrava, mensalmente, no país era muito grande e que vários hospitais passaram a importar remédios e material médico, que teriam preço menor do que seus similares nacionais. A argumentação do sindicato contra esse procedimento era de que, além da concorrência ilegal, os hospitais poderiam estar comprando medicamentos falsificados no estrangeiro.
Várias indústrias vinham fazendo denúncias ao SINDUSFARM, acerca da venda de produtos ilegais. O diretor jurídico e de relações governamentais do laboratório Lilly, João Augusto Vasconcellos, apontava uma filial brasileira, de empresa norte americana com sede em Miami, que prometia entregar qualquer quantidade de qualquer medicamento a seus clientes no Brasil. Entre esses clientes estariam hospitais, casas de saúde e fundações de renome sediados em São Paulo.
Para o secretário nacional de vigilância sanitária da época, Ronan Tanus, tratava-se de um caso de polícia federal. A fiscalização seria difícil porque a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) somente trabalhava com base em denúncias, que deviam ser feitas pela população. Outra dificuldade, segundo o secretário, é que em muitos países as vitaminas eram consideradas suplementos alimentares, enquanto que no Brasil, eram remédios. Tanus recomendava aos consumidores que os pontos de venda de medicamentos ilegais fossem denunciados nos Centros de Vigilância Sanitária de cada estado ou junto ao PROCON.
No editorial publicado na revista Médicos, em 1998 consta que existe um documento, produzido pelo Ministério da Saúde, datado de outubro/novembro de 1996, que é um vale de lágrimas administrativo, jurídico e funcional. Um único dado desse documento acerca da Secretaria de Vigilância Sanitária é o bastante para que se tenha uma idéia do descalabro existente nesse órgão: depois de cinco anos de comercialização, a revalidação dos medicamentos similares não era feita, por falta de pessoal e de condições técnicas. Os medicamentos eram revalidados automaticamente. Outro dado menciona o fato que a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) delegava suas funções para as Secretarias de Saúde dos estados e não exercia nenhum controle ou coordenação sobre essas unidades.
O artigo do professor Antônio Carlos Zanini, intitulado “Falsificação, Má Qualidade, Informação Enganosa”, publicado na revista “Médicos”, é ainda mais detalhado e explícito. Devemos destacar que o professor Zanini sabia do que estava falando. Trata-se de um professor associado de Clínica Médica, da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (FMUSP) e consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi diretor do Laboratório Central do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) no período de 1975 a 1979. Foi coordenador de pesquisas da Central de Medicamentos (CEME) em 1980. Foi, também, presidente do Conselho Consultivo da Central de Medicamentos (CEME) em dois períodos, de 1977 a 1985, e ainda Secretário Nacional de Vigilância Sanitária no período de 1980 a 1985, no governo do presidente João Batista Figueiredo.
O professor Zanini destacava, nesse artigo, o fato de que um mercado altamente lucrativo, de US$ 10,5 bilhões de dólares por ano, o quarto mercado mundial de medicamentos, estimulava a manipulação de preços, a falsificação e a informação enganosa. A ausência de um controle eficiente, que deveria ser exercido no Brasil pela Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), permitia que as fraudes ocorressem livremente.
Em um capítulo do artigo, o professor Zanini chamava particular atenção para a falta de estrutura da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), principalmente, no que se refere à delegação de tarefas de fiscalização para os estados e à falta de poder da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) para fiscalizar as estruturas estaduais. O professor chamava a atenção para a necessidade de uma mudança de mentalidade, no sentido de criar mecanismos de vigilância dos fiscais do órgão e traçava um paralelo entre a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) do Brasil e o “Food and Drug Administration” (FDA) dos Estados Unidos da América. Abaixo a transcrição de alguns tópicos. “No Food and Drug Administration (FDA), o funcionário do governo tem restrições como se fosse corrupto, justamente para evitar a corrupção e, principalmente, a suspeita de corrupção. No Brasil os fiscais são tratados como se fossem sempre honestos e competentes e estavam sujeitos, apenas, a controles por amostragem. No nosso reino da fantasia, em 50 anos de Vigilância Sanitária, (SVS) no Brasil, não se conseguiu nenhum registro de fiscal que tenha sofrido processo administrativo por corrupção, ou seja, é como se todos os fiscais fossem perfeitos e como se não tivesse ocorrido nenhuma corrupção, nessa área, na útima metade do século”.
“Comparando o rigor de procedimentos, um funcionário do Food and Drug Administration (FDA) não pode aceitar sequer um refrigerante. O exemplo parece ridículo mas exemplifica o nível de exigência e isolamento que deve ter um funcionário da vigilância sanitária: não pode aceitar dinheiro, não pode aceitar presentes, não pode aceitar almoços e tem que registrar todo e qualquer encontro com funcionários da indústria farmacêutica, fora do ambiente de trabalho. Sem tal rigor não se consegue confiar em nenhuma vigilância sanitária”.
Quanto ao registro de medicamentos no Brasil, durante quase cinco décadas, os critérios exigidos para o registro de medicamentos novos, no Ministério da Saúde, junto à antiga Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) eram vagos e, eminentemente, burocráticos. Segundo o professor Zanini, o registro de medicamentos era, na prática, baseado em opiniões de meia dúzia de técnicos do quadro permanente da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), de duvidosa competência, que se reuniam poucas vezes por mês e que analisavam e opinavam sobre todos os produtos. Em 1992, as decisões acerca do registro de medicamentos, na Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), eram tomadas por duas funcionárias, uma médica e uma farmacêutica, conforme constava de uma nota no Jornal do Conselho Federal de Medicina (CFM) de dezembro de 1992.
Ainda em relação ao registro de medicamentos, a situação era de total desordem. Em 1992, o diretor do Departamento Técnico-Normativo do Ministério da Saúde declarou que era absolutamente impossível saber quantos medicamentos estavam registrados na Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS). Segundo esse funcionário, ninguém sabia. Poderiam ser de 6.000 a 30.000 medicamentos. Na época, países como Chile, Costa Rica, Panamá, Uruguai e Venezuela possuíam um registro preciso de medicamentos, conforme o Jornal do Conselho Federal de Medicina (CFM), de dezembro de 1992.
Medicamentos com registro aprovado pela Secretária de Vigilância Sanitária (SVS) eram considerados, automaticamente, como sendo de boa qualidade. Quando existia fiscalização e ela comprovava alguma irregularidade com o produto, essa irregularidade era atribuída apenas ao lote analisado. Com o pagamento de uma pequena multa, o problema era superado. Foi o que aconteceu, no episódio do anticoncepcional Microvlar® do laboratório Schering.
“Habitualmente, a fiscalização das indústrias era anual e realizada por sorteio e portanto era menos rigorosa que aquela realizada nos frigoríficos. Nos frigoríficos brasileiros o controle de qualidade da carne era feito pelo Ministério da Agricultura, que dispunha de 550 fiscais para controlar 550 frigoríficos. A fiscalização era feita sobre toda a produção e a inspeção era diária. Mesmo assim, era sabido que cerca de 50% da carne consumida no Brasil era vendida, nos açougues, sem fiscalização”.
Quanto à fiscalização deficiente, a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) dispunha, na época de sua existência, isto é, até dezembro de 1998, de 1.400 fiscais e um orçamento anual de R$ 81.000.000 ou US$ 40.000.000. É fácil concluir que com esses minguados recursos e com uma estrutura burocrática sucateada, ficava difícil cobrar eficiência, em um país onde não se sabia quantos medicamentos existiam e onde, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em torno de 70% dos medicamentos comercializados em farmácias eram vendidos sem prescrição médica e onde, segundo alguns autores, cerca de 20% dos medicamentos eram falsificados.
COMENTÁRIOS
Como comentário a esses fatos, enumerados pelo professor Zanini, cabe refletir sobre o que segue:
a) Será que estes fatos eram desconhecidos pela sociedade, pela comunidade médica, pela universidade, pelo governo e pela imprensa ?
b) Ou estes fatos eram conhecidos e todos se comportavam como se eles não existissem, ou como se fossem normais e inevitáveis ?
c) Ou é tudo mentira e trata-se de fantasias fora da realidade e não havia nada de errado com a industrialização e comercialização de medicamentos bem como a fiscalização feita pela Secretaria de Vigilância Sanitária ?
Não temos como responder a essas indagações. O fato é que os medicamentos similares eram produzidos por algumas indústrias, às vezes pouco idôneas. A fiscalização dessas indústrias e desses medicamentos era precária. Os médicos costumavam prescrever esses medicamentos. As farmácias os vendiam e os balconistas, frequentemente, os substituíam por outros, chamados BO, isto é, “bonificados” ou “bons para otários”, segundo um jargão vigente no meio farmacêutico. A população comprava esses medicamentos, na ilusão de que eram eficazes, satisfeita por estar comprando por um preço um pouco mais barato que aquele dos medicamentos originais.
A verdade é que, aparentemente, tudo isso veio à tona e veio a ser discutido pela comunidade somente a partir de dezembro de 1998 e fevereiro de 1999, com a criação da nova Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a promulgação da Lei 9.787/99 ou a chamada Lei dos Genéricos. Podemos considerar que esse último fato, o de trazer a tona toda essa desordem por si só, tornaria a Lei dos Genéricos muito meritória, mesmo que as demais metas da mesma não viessem a ser atingidas.
FONTES CONSULTADAS E LEITURA RECOMENDADA:
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Brasil - Lei 6.360 de 23 de setembro de 1976. Diário Oficial da União (DOU)
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Brasil - Medida Provisória 79.094 de 24 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União (DOU), 21 dezembro 2000
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Paprocki, J. O faz de conta da chamada Lei dos Medicamentos Genéricos. Jornal Mineiro de Psiquiatria, Belo Horizonte – MG, Ano IV, Nº 12, março de 2000
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Paprocki, J. A indústria farmacêutica multinacional. Jornal Mineiro de Psiquiatria, Belo Horizonte – MG, Ano IV, Nº 15, abril de 2001
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Paprocki, J. Drogas, fármacos, medicamentos, remédios e suas classificações. Jornal Mineiro de Psiquiatria, Belo Horizonte – MG, Ano VI , Nº 17, maio de 2002
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Silvermann, M.; Lydecker, M.; Lee, P.R. Bad Medicine – The prescription drug industry in the third world. Ed. Stanford Universisty Press, Stanford, California, 1992
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Zanini, A.C. Falsificação, má qualidade, informação enganosa. Médicos FM-USP, São Paulo – SP, Ano 1, Nº 4, set/out. 1998
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